Recensão publicada na revista Antropologia Portuguesa (2007, n.º 20)
Aguiar, João. 2006. Lapedo: Uma Criança no Vale. (Colecção: Obras de João Aguiar). Porto, ASA. 189 p. ISBN 972-41-4871-8. € 14
Quando os arqueólogos Pedro Souto e João Maurício descobriram os restos ósseos matizados de ocre de uma criança no Vale do Lapedo (Leiria), no Outono do ano de 1998, poucos teriam a ousadia de esperar que o achado ia transformar tão profundamente a perene e visceral discussão em redor das origens do homem anatomicamente moderno
[1]. O esqueleto da criança, razoavelmente completo, foi encontrado num abrigo rochoso do Vale do Lapedo, denominado Abrigo do Lagar Velho. A criança, de sexo indeterminado
[2], morreu com cerca de quatro anos de idade. O corpo, possivelmente envolvido numa mortalha pigmentada de ocre, foi deposto na sepultura com a cabeça voltada para leste e os pés para oeste. Adstritos aos restos ósseos foram encontrados alguns elementos animais e adornos, com inequívoco valor simbólico.
Estes factores, associados à antiguidade dos remanescentes esqueléticos (cerca de 25.000 anos), bastavam para creditar uma importância extraordinária a esta sepultura do Paleolítico Superior. Contudo, o interesse científico e mediático abandonou-se quase em exclusivo à surpreendente hipótese colocada pela equipa que escavou e estudou a criança do Lagar Velho (que incluía, entre outros, João Zilhão, Erik Trinkaus e Cidália Duarte). Resumidamente, a hipótese proposta por este grupo de cientistas admite que esta criança exibe um mosaico de características morfológicas que resultou, supostamente, de uma miscigenação regular entre Neandertais e Cro-Magnons, durante a fase crepuscular da existência Neandertal na Europa
[3]. Como seria de esperar, esta revelação atordoou a comunidade científica, que prontamente lhe reagiu (com um tropel de criticismo ou afinando panegíricos, conforme o paradigma seguido). De facto, o menino do Lapedo cedo se tornou em mais um manancial de discórdia na questão da origem do homem moderno, a mais velha controvérsia no seio da paleoantropologia
[4].
Dos escombros de uma contenda que se mantinha mais ou menos confinada nos limites estreitos da comunidade científica surge Lapedo: Uma Criança no Vale, uma obra do romancista e jornalista João Aguiar (autor de uma vasta produção ficcionada, na qual se incluem obras como O Comedor de Pérolas, A Hora de Sertório e Inês de Portugal), que pretende divulgar a importante descoberta do Abrigo do Lagar Velho – sem a secura da nomenclatura científica ou a superficialidade do aparelho mediático jornalístico.
O prólogo do livro de João Aguiar é, conscientemente, ficcionado a partir de circunstâncias factuais, designadamente a morte e enterramento ritual de uma criança. Partindo desta conjuntura, o autor entretece uma “história possível e triste”
[5] em redor dos dramáticos eventos que culminaram na morte do menino do Lapedo. Aos qualificativos
possível e
triste eu acrescentaria
ingénua e
inverosímil: o relato da perseguição de um tentilhão pelo menino e do seu funesto zénite é infantil – mas sem o brilho dos contos para crianças dos irmãos Grimm ou de Edith Nesbit – e desprovido de qualquer base científica. Mas Aguiar é honesto nas suas intenções: se o livro, como um todo, não pretende ser um romance (pretende revivescer a memória do que foi a história da descoberta da criança); neste preâmbulo, a ficção funciona apenas como estratégia de introdução na narrativa de um facto indisputável: a morte de uma criança de quatro anos, inumada no vale do Lapedo há cerca de vinte e cinco mil anos. O propósito explícito de resgatar a história do menino do Lapedo do círculo restrito da arqueologia e da paleoantropologia, divulgando-a entre não iniciados, reclama um inevitável aligeiramento dos dados académicos, opacos e indestrinçáveis para o leitor insciente e furtivamente interessado nestas áreas do saber. Desse modo, a insistência de João Aguiar em confessar, de forma clara, a amenização e tempero dos dados científicos com “alguma especulação” (se quisermos ser eufemistas) – relembrando-nos, talvez inconscientemente, que “a realidade não tem a mínima obrigação de ser interessante”
[6] – valida a intenção do autor em tornar inteligível esta descoberta científica e também de a tornar mais atraente e sedutora ao olhar inexperiente do leigo.
Não obstante o prelúdio ficcionado, neste opúsculo o romancista cede um amplo espaço ao vero episódio histórico que constituiu a descoberta, no Vale do Lapedo, de uma sepultura com cerca de 25.000 anos. O autor reconhece que esta não é uma obra de ficção, não é um conto, é uma descrição dos factos colorida com algumas reflexões do próprio Aguiar, por vezes pseudo-científicas e heterodoxas. Como escreveu Aquilino Ribeiro n’
A Casa Grande de Romarigães[7], se “no romance, o escritor escolhe os episódios; na história, são os episódios que se lhe vêm oferecer” e o autor de
Lapedo: Uma Criança no Vale, embora sucumbindo por vezes à tentação de especular sobre os factos e mesmo de os subverter através da ficção, enredou uma narrativa que constitui uma apresentação válida e prestimosa às circunstâncias científicas que envolveram a descoberta, o estudo e a divulgação da sepultura do Abrigo do Lagar Velho.
Os episódios da história começam, pois, a ser revelados: no primeiro capítulo (“25 Mil Anos Depois”) João Aguiar dá uma ênfase compreensível às circunstâncias especiais – quase míticas – que rodearam a descoberta da sepultura do Vale do Lapedo e que envolveram retroescavadoras, bofetadas em alunos desobedientes, protestos de grupos ambientalistas e uma tese de licenciatura. A escavação de emergência, minuciosa e detalhada, imediatamente preparada por João Zilhão e levada a cabo por Cidália Duarte e Ana Cristina Araújo, contrasta com a sucessão de acasos que motivaram o precioso achamento. O autor refere também o inevitável e crescente interesse do público e dos media sobre os acontecimentos que se iam desenrolando no Abrigo do Lagar Velho. Incidentalmente, Aguiar pontua o texto com a narração sucinta de factos jocosos envolvendo os membros da equipa de escavação, por exemplo:
“(…) numa das paragens (…) para reabastecer o carro de combustível, João Zilhão, ao regressar ao automóvel, depois de ter efectuado o pagamento, tão absorto estava na questão que entrou na viatura errada, um automóvel que se encontrava estacionado a certa distância do seu.”[8]
A intercalação episódica destas pequenas histórias, para além de aliviar a densidade dos factos arqueológicos e paleoantropológicos, alimenta no leitor um sentimento de empatia para com os investigadores e, concomitantemente, para com as hipóteses científicas que defendem. O que, parecendo inócuo, não o é totalmente.
No capítulo seguinte (“Casus Belli”), o escritor introduz definitivamente na narrativa a teoria de que a peculiar morfologia esquelética da criança do Lapedo resultou de trocas génicas intensivas entre Neandertais e homens anatomicamente modernos (o primeiro capítulo termina com uma breve alusão a esta hipótese, formulada inicialmente por Erik Trinkaus). Nesta fracção do texto, Aguiar pormenoriza a teoria da hibridização, define e expõe os factos que a fundamentam e estabelece, também, uma área narrativa para o contraditório. Todavia, a posição do autor não é a do observador neutral. João Aguiar escolhe campo: do lado dos que defendem a origem mestiça
[9] do menino. Mas, diga-se justamente, a sua inclinação não se dissimula na clandestinidade e o escritor assume de forma inequívoca o seu proselitismo. Como exemplo, no capítulo 6 (“Pensando Sobre o Assunto”), Aguiar escreve:
“
Embora parte da comunidade científica ainda não aceite esta hipótese (da miscigenação), penso que, tendo em consideração todos os argumentos contra e a favor, é legítimo tomá-la como um dado adquirido (…).”
[10] Nos capítulos “Ritual, Et Caetera” e “O Discurso dos Sedimentos” as temáticas abordadas são bem mais consensuais. Aguiar foca a sua escrita no ritual de enterramento da criança do Lapedo, considerando-o no conjunto de enterramentos rituais no Paleolítico Superior; e nas condições climáticas, geológicas e ecológicas do Vale do Lapedo há vinte e cinco mil anos. Nos capítulos subsequentes (“A Leitura Simbólica” e “Pensando sobre o Assunto”), o escritor conduz novamente a narrativa para o campo da especulação consciente. O capítulo 6 (“Pensando sobre o Assunto”), sobretudo, inclui uma série de imprecisões científicas e algumas reflexões algo perturbantes. Refira-se, nomeadamente, o encadeamento da presumível mestiçagem da criança do Lapedo com a inclinação nacional de ir “para a cama com toda a gente”
[11] e de criar comunidades mestiças em diversos pontos do antigo império colonial português. Este modelo anacrónico de luso-tropicalismo, adoptado pela propaganda do Estado Novo, é inaceitável do ponto de vista da antropologia coetânea.
Lapedo: Uma Criança no Vale insere-se numa longa tradição de obras de vulgarização científica. Escrito por um romancista, fecunda-se das qualidades e lacunas que decorrem dessa condição de surgir da pena de alguém que não provém dos domínios da arqueologia ou da paleoantropologia. A divulgação científica é parte elementar do processo de conhecimento do mundo e, desse modo, o livro de João Aguiar constitui um importante e prático roteiro (apesar de, por vezes, pecar pela propensão especulativa do autor) de introdução a uma das mais importantes descobertas arqueológicas alguma vez feitas em Portugal.
[1] Zilhão, J.; Trinkaus, E. 2002. Portrait of the Artist as a Child: The Gravettian Human Skeleton from the Abrigo do Lagar Velho and its Archaeological Context. Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, p. 9.
[2] No entanto, e apesar das dificuldades metodológicas da categorização sexual em esqueletos juvenis, esta criança é amplamente conhecida como o "menino do Lapedo". Esta designação será utilizada mais vezes, neste texto.
[3] Duarte, C.; Maurício, J.; Pettitt, P.; Souto, P.; Trinkaus, E.; van der Plitch, H.; Zilhão, J. 1999. The early Upper Paleolithic human skeleton from the Abrigo do Lagar Velho (Portugal) and modern human emergence in Iberia. Proceedings of the National Academy of Sciences USA 96: 7604-9.
[4] Cunha, E. 2001. Origem do Homem Moderno. Programa, Conteúdo e Métodos de Ensino Teórico-Prático. Coimbra, Relatório apresentado no âmbito das Provas de Agregação.
[5] Aguiar, J. 2006. Lapedo: Uma Criança no Vale. Porto, ASA, p. 21.
[6] Borges, J. 1998. Ficções. Lisboa, Teorema, p. 123
[7] Ribeiro, Aquilino. 1957. A casa grande de Romarigães. Lisboa, Círculo de Leitores, p. 9
[8] Aguiar, J. 2006. Lapedo: Uma Criança no Vale. Porto, ASA, p. 39.
[9] Aguiar, J. 2006. Lapedo: Uma Criança no Vale. Porto, ASA, p. 59.
[10] Aguiar, J. 2006. Lapedo: Uma Criança no Vale. Porto, ASA, p. 174.
[11] Aguiar, J. 2006. Lapedo: Uma Criança no Vale. Porto, ASA, p. 175. Etiquetas: antropologia, João Aguiar, Lapedo