Estéticas da morte #trinta
A hesitação coordenada das mãos. Dias a mais fora da pele. A carta. A mulher do olho garço, julgo que era este o nome pelo qual Laura era conhecida no bairro, encostou o corpo à transparência efémera do vidro e permitiu-se à observação diletante, quase obstinada, dos homens que, no cimo das torres em construção, preparavam a boca e todo o resto do sistema digestivo para o alimento que, bem vistas as coisas, é apenas um saboroso e nutriente paliativo da morte. Para quê, perguntou-se Laura, tudo é pó e ninguém parece aperceber-se disso: mais vale que olhem mesmo, como se fosse a mim que estivessem a comer, até à náusea da erecção. A carta esvoaçou para longe, parecia mesmo um daqueles pardais de jardins de fim de tarde e mãos velhas de milho - leve, leve, leve. Ocorreu-lhe segurá-la mas no mesmo instante adivinhou um sopro repentino, brando como o amansado zéfiro; e, nem um milésimo de segundo depois, um estrondo indiferente e seco (um salpico quente de sangue e bocadinhos de osso). Um dos operários quis mesmo saltar-lhe em cima, o olho garço de Laura calculou que o homem falhara o propósito em cerca de 45cm. A carta e os seus segredos (mas não o sobrescrito) perderam-se definitivamente na agitação carpida de gritos e sirenes.
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