Estéticas da Morte #quarenta
Foi quando o outono se descamisava numa fúria derradeira de velho inconsolável - disso, eu lembro-me bem. Um graduado do exército, de pança farfalhuda e bigode anafado, solicitara-me um ou dois orgãos essenciais (não para si, mas para uma filha enfermiça e pouco bonita), talvez o coração e as vísceras menos nobres, que, sem grande vontade ou especial prazer, lhe concedi em troca de duas notas reluzentes. Não me julguem estúpido, porém. Os meus ventrículos continuaram a ser meus: exigi um hiato de quinze anos entre a data de celebração do contrato e a data de entrega de tão importante mobiliário.
Os anos passaram, um após o outro - geralmente é o que acontece e desta vez, para não variar, aconteceu outra vez assim - e, um dia, o graduado reclamou o que era seu. Eu, desmemoriado e um pouco bêbedo, fui apanhado de surpresa e sem uma única garrafa que me fizesse esquecer (um pouco mais) o gesto com que cavara a minha própria sepultura. O esquecimento, julgo, é uma forma de salvação. Porém, o militar não tinha esquecido o que eu lhe prometera e, por via de alguma persuasão e de um número excessivo de agentes da polícia, obrigou-me a cumprir a lei e a trespassar-lhe, finalmente, as doces vitualhas do meu peito e ventre.
Fui chamado, obedeço. Eis o meu corpo, tomai-o e dele fazei nada.
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