Passeio Público
(Recordação do dia dos mortos)
O dia era de finados, dos fiéis defuntos. A romaria aos cemitérios tinha começado bem cedo, pela manhã. A prática costumada de milhões de católicos: recordar os mortos, adornar a derradeira morada dos que partiram antes de nós. Revivescer a sua memória.
No Alto da Conchada ou no cemitério paroquial do Ameal o ramerrame embelezador é o mesmo, os sentimentos também. A estranheza da morte é igual em todo o lado. Apesar da crise, e do preço dos gladíolos, as áleas recolhidas entre os plátanos encheram-se de cores celebratórias, de homenagens póstumas e saudades desabrochadas em ramos imensos de cravos.
Quando cheguei ao cemitério do Ameal, com a tarde quase cumprida, a colina marmórea aconchegava já o ardor das velas e o cuidado de alguns derradeiros visitantes, afrontados pela comoção nostálgica, suspendia-se no arrasto de flores e na libação a negro das memórias calcadas pelos passos de anos. Reparei que a maior parte das sepulturas se animavam de branco (frio, pétreo e perene), e aquelas velhas grades que antes marcavam o horizonte do cativeiro eterno, e o delimitavam, vão sendo cada vez menos, desaparecendo, ano após ano, em pachorrento denodo.
Pelo que sei, o último pastor da aldeia está vivo e transpira saúde – ainda bem. As grades dos cemitérios – sabiam-no? – protegiam os mortos dos animais de pasto. Como vai ser quando desaparecer o último pastor? Sem a vigília tutelar do pastor perdem-se as ovelhas na infinitude dos caminhos. Perdem-se as grades que nos prendem a algum lado - mesmo que seja o lado de lá.
Vagueei por ali, mais um pouco, ciciando objecções às lonjuras finais da tarde. Procurei uma daquelas grades enferrujadas, preguiçosas, chegadas aos muros depois da jubilação compulsiva: o seu vago azul fazia lembrar a cor de um berço. Diluí a atenção no sentimento melancólico da brevidade da vida. Na realidade, a proximidade de um cadáver acelera a floração, as mais belas violetas alimentaram-se da corrupção. A terra dos mortos, a própria morte, é fecunda: exquisitum alimentum est. Os antigos sabiam o que diziam. O ciclo nunca acaba.
As folhas outonais, semeadas ao acaso, queimavam de vermelho as lajes brancas. Percorri em angústia os epitáfios. A brevidade. A inevitabilidade. A violência do julgamento: O que é o mundo? O que é? Nada.
(Ontem, 05/11, no Jornal de Notícias)
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