Estéticas da morte #vinte
Sandro Micael concebeu o Gólgota num monte abandonado, propriedade dos Oliveiras [esquecida família que nos idos de 1960 havia emigrado para Paris de França]. Agora, o monte era apenas um deserto de silvas, tijoleira e sardaniscas, arredado das últimas casas frequentadas por gente de duas pernas. Sandro crucificou o Chichas, um dos gatos da família, eram exactamente 12 horas. O dia: sexta-feira santa [sabia-o porque de manhã o pai tinha ido buscar as redes ao remansoso Guadiana. E isso queria dizer apenas e só uma coisa: o almoço ia ser caldeirada de peixe do rio, o prato costumado da peculiar sexta-feira em que os homens mataram pela primeira vez um deus]. Às 15 horas, o pequeno centurião trespassou o Chichas com uma faca de cozinha. O gato, que estava vivo ainda há um minuto, deixou de o estar. Vivo, entenda-se. Sandro rapidamente se transfigurou: uma mulher no meio das mulheres que amortalharam o corpo do crucificado. Depositou o cadáver num buraco esquecido pelas silvas e esperou. Três dias, Domingo de manhã. O gato, o Chichas, continuava morto. Cheirava a gato morto, até. Cheio de formigas e outras bichezas. Estava tudo enganado: a mãe, a Joana [catequista, a estudar para professora em Évora], o senhor Padre Joel e o livro sobre os Egípcios que dizia, a páginas tantas, que os gatos eram deuses. Aquele não, aquele cheirava mal e agora só se mexia quando Sandro Micael lhe apontava um pontapé fortuito, assim a modos que para esconjurar a experiência falhada ou, quem sabe, para afastar as malditas formigas.
Etiquetas: Estéticas da morte, gatos
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