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31.3.09

Estéticas da Morte #cinquenta e três

Um velho espia-me, sentado. Porque me olhas assim, paizinho? Porque perdes o teu tempo comigo, tu que não tens mais tempo para desperdiçar? Sou o arremedo possível do que foste, sei bem que é isso que pensas. Mas, por favor, pára de olhar. Vive ainda, mais um pouco, como se amanhã pudesses esperar ainda outras manhãs. Esta manhã não te chega, paizinho? É tarde demais para chorar. As folhas do plátano caíram todas, já as levaram para longe os almeidas da junta, e tu, descansa, permaneces. Sem o troar de quedas e o assobio do vento - a tua anca recupera, não te preocupes. Ninguém te leva. Espias um pobre rapaz que não sabe o que dizer para que feches o olhar de uma vez por todas. A tua cabeça é ainda uma cavala fresquinha, não te enerves, vais a falar para a cova, vão ter que te calar, de certeza, com o Pascoaes na ponta da língua, lembras-te?, como se fosse o dia do exame em mil novecentos e trinta e coiso. Calça-te, vamos ver as árvores, assim não, ao contrário, essa pantufa?, sim, no outro pé. Anda, alminha. Pára de olhar. Vive mais um pouco, deixa-te ir.
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30.3.09

Mr. Ballard, you are wonderful


(Carlo Crivelli, 1486, The Annunciation, The National Gallery, London)

«Perish the thought, and let the exquisite bird be itself, and nothing more or less than itself. What could be more natural, and more mysterious, than a peacock and a loaf of bread appearing on the scene to celebrate the forthcoming birth of the Saviour?»

(JG Ballard, Miracles of life, pág. 155)

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26.3.09

Passeio Público

(Suspensão temporária das propinas)

O que se passa na Universidade de Coimbra (e em muitas outras universidades portuguesas) é tão grave que requer súplicas impossíveis, apoio enérgico, e medidas extremas. Muitos estudantes vêem-se confrontados com a anormalidade da crise e deixam de estudar por razões económicas; alguns, como na Universidade da Beira Interior, recorreram mesmo ao Banco Alimentar Contra a Fome. Não ter dinheiro para pagar as propinas, e desistir de estudar por causa disso: é esse o destino indiferente de centenas de estudantes, a transposição miserável de um qualquer cabo da desesperança.

Apesar da situação na UC não ser das mais trágicas, a Associação Académica de Coimbra decidiu manifestar-se, exigindo o reforço da acção social escolar. Felizmente, a solidariedade ainda é uma marca da academia conimbricense. Não obstante, o ar do tempo não se compadece com intercessões desanimadas. As exigências deveriam cultivar o excesso e a demagogia, o denodo selvagem dos zelotas. Nada receber, tendo pedido tudo: eis um desaire honroso, um destino preferível, apesar de tudo.

E se em vez de uma “suspensão temporária da democracia”, de acordo com os anseios “irónicos” de Manuela Ferreira Leite, os estudantes exigissem uma “suspensão temporária das propinas”?
Revolta e fogo gratuitos? Não me parece. Talvez um desafio à farsa da vida e, no mínimo, um repto mobilizador ao Governo. Ao país, sobretudo. O marasmo é sempre pior que um passo em falso.

Os bons leitores são uma espécie desprotegida e, por vezes, podem sentir-se atacados por esta espécie de provocação amigável. Ou melhor: por esta provocação utópica. Por vezes, reclamar o impensável é a única forma de urgir o futuro.
(Ontem, 25/03, no Jornal de Notícias)

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24.3.09

Estéticas da Morte #cinquenta e dois

Tu também vives – grande desta cidade, efialta da mulher – no vazio do teu nome e chegas cansado de uma rua à outra, como se a limpidez da geografia fosse supérflua: ecuménica, monótona. Outrora eras o gado trémulo, precipitado, mas a vida é uma redoma incerta – vileza ou desfeita de Deus – e há-de entender-se o cadafalso. Retoma a parénese, o ardor moral do condenado – tu vives ainda, o leão desenha as sílabas na cegueira prometida. Bebe deste sôfrego bocejo a suspeita de toda a desproporção. A sementeira do mal (mimetizas a planta) incandesce na monstruosidade lábil da derrota, revela-te imundo ao carrasco. O homem é o que dele faz este machado.
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23.3.09

Nojo

A Liga de Clubes não vai formular qualquer pedido de desculpa, conforme o exigiu o presidente do Sporting, Filipe Soares Franco, segundo apurou o JN.
Recordem-se as palavras do lider leonino, publicadas no site do clube: "Saio revoltado, ferido. É triste estar assim nesta actividade. Vamos apelar à Liga para que nos peça desculpa, os árbitros, a Liga e a Comissão de Arbitragem (CA)". Também a CA não vai reagir.
Vítor Pereira, seu presidente, manteve-se, ontem, em silêncio. Por outro lado, a Comissão Disciplinar da Liga (CD) vai abrir vários processos de averiguações a sportinguistas por alegados ilícitos, decorrentes de gestos e afirmações.
Pedro Silva vai estar em foco, não só pelo vermelho que viu, mas também pelas acusações que fez (disse que tinha havido "um roubo") e pelo gesto antidesportivo que protagonizou ao arremessar a medalha de finalista vencido para o público. Mas, igualmente, o técnico Paulo Bento, por denúncias e gesto, bem como Soares Franco, também deverão ser alvo da CD.

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22.3.09

Riding through the glen

19.3.09

Passeio Público

(Protocolos e eleições)
As cidades, vilas, aldeias e lugares deste país encontram-se oficialmente em ebulição; e, pelo menos no papel, multiplicam-se os esforços de presidentes de câmara e vereadores, sempre preocupados (e agora mais) com o bem-estar do cidadão ingrato. Pressentidas as eleições autárquicas, começa o corrupio de inaugurações, protocolos e apresentação de projectos.

Em Coimbra não se ouve sequer falar de inaugurações, do famigerado «cortar da fita», talvez por efeito da crise económica, ou da má gestão do tempo. Porém, os projectos e os protocolos, sobretudo estes, abundam. Nas últimas semanas, a pragmática de Carlos Encarnação estimulou as Bandas Filarmónicas de Ceira, Vilela e Taveiro, a Associação Desportiva de Souselas, a Junta de Freguesia de Santa Clara, o Automóvel Clube do Centro e, quem diria?, a própria Universidade de Coimbra. No fundo, se acreditarmos no substrato cavado das notícias, são coisas pequenas e formalmente burocráticas que se revelam numa imensidão de insignificâncias e fogos-fátuos.
O estabelecimento de protocolos com metade das instituições do Concelho parece ser apenas uma manobra estetizante, estratégia permissível nas batalhas dos votos (uma heresia possível) mas reveladora da escassez de visão a longo prazo deste executivo camarário e, sobretudo, um melancólico indicativo do pouco trabalho que se tem concluído. As eleições parecem estimular, mais do que a democracia, o empenho e a paixão dos governantes; e o esforço demagógico é superlativo nas eleições autárquicas – mas só em algumas autarquias, diga-se com justiça.

Os protocolos, os projectos, a demagogia, o populismo: em Coimbra, tudo o que descamba num sinal adiado. A cidade parece não perder a luta vã com o tempo. Mas, com tantas horas descontadas ao futuro, as mãos começam a acariciar ruínas em vez de faces.
(Ontem, 16/03, no Jornal de Notícias)

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16.3.09

Submissão à barbárie

Refiro-me à meteorologia: o sol é o pior inimigo da civilização, dos feitos espalhafatosos dos homens.

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13.3.09

Italian Music #ten

Morrissey - Something is Squeezing My Skul*

(I'm doing very well/It's a miracle I've even made it this far )

*A melhor música de 2009.

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12.3.09

Passeio Público

(Apologia crítica)
Há uns dias, na apresentação do "Coimbra Criativa e Empreendedora'09", Norberto Pires, o presidente do Coimbra Inovação Parque (iParque), sustentava a ideia de que Coimbra é uma cidade diligente e criativa, faltando-lhe, não obstante, um factor essencial na disposição do êxito: o “bairrismo”. Qualquer observador imparcial entende, decerto, que existe um ponderoso fundamento no que Norberto Pires afirma. A cidade, como aliás o país, sofre de alguma esquizofrenia: ou se leva demasiado a sério, ou se acha miserável. Naturalmente, e face às multíplices contrariedades da “crise”, esta última postura torna-se hegemónica.

O “bairrismo” não deve (não pode) ser chauvinista ou excludente, e muito menos configurar um “bem-querer” absoluto e acrítico. Porém, alguns agentes (culturais, industriais, tecnológicos, etc.) da cidade merecem um olhar benevolente e animado, merecem certamente que lhes dêem o devido valor, muitas vezes superior ao que apercebemos no que “vem de fora”. O enlevo em relação ao “produto estrangeiro” é, de resto, uma marca emblemática de provincianismo.

O iParque, a Escola da Noite, a Crioestaminal, a Almedina, os Bunnyranch, os HUC, a Critical Software, o Bruno Aleixo, ou o mensário de actualidade literária Os Livros Ardem Mal (peço desculpa a tantos outros que não menciono por falta de espaço) são argumentos que justificam uma apologia mais optimista relativamente à cidade.

Coimbra é uma cidade imperfeita – e só quem gosta verdadeiramente dela o assume –, virada para o próprio umbigo, cumprida sob a umbela tutelar da Universidade. Sabemos quais as suas limitações, mas não podemos resignarmo-nos a elas, e aceitar submissamente a dura lei da moderação. O “postal” da acrópole encimada pela Cabra é decerto aprazível; aceitá-lo sem reservas é, eventualmente, uma delicadeza triste.

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11.3.09

7-1?

10.3.09

700 anões (+20)


(«Uma rua», Lisboa)

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5.3.09

Passeio Público

(Hospital dos Covões, farmácia dos Covões)

Em primeiro lugar, uma fantasia. Imaginemos (não é difícil) que são quatro da manhã e que nos encontramos no serviço de urgência de um hospital. Estamos exaustos, irritados e, sobretudo, doentes. Com dores, indisposição, qualquer coisa não muito boa. Já sabemos o que nos aflige e até já temos a prescrição com os fármacos que podem melhorar a nossa condição. Podemos ir para casa – só falta mesmo encontrar uma farmácia de serviço que, com alguma sorte, há-de providenciar os medicamentos que nos foram indicados. Uma enorme, uma colossal maçada. Consideramos, pois, a utilidade e a conveniência de uma farmácia de venda ao público nas próprias instalações do hospital; seria algo quase divino, e no mínimo maravilhoso.

Abandonemos os devaneios. No Hospital de Santo André, em Leiria, e no Hospital Geral do Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), é já possível aviar rapidamente o receituário, 24 horas por dia, 365 dias por ano (feriados incluídos). A nova farmácia dos “Covões”, resultante de um concurso público (encarniçado, como se deseja) cujo vencedor foi um consórcio formado pelas três farmácias da margem esquerda (acasos da fortuna), não só facilitará a vida aos utentes como criará empregos, seis ou sete postos de trabalho, na “margem esquerda”. Tudo parece perfeito e irrepreensível.

Contudo, uma suspeita apical, primária, espicaça-me a consciência. Uma primeira questão (com adenda): porquê uma farmácia de capitais privados (repito: de capitais privados) num hospital público? Porque não pensar na reconversão das chamadas “farmácias hospitalares”, criando uma valência de atendimento ao público? Uma segunda questão: se o objectivo cardinal destas farmácias é o bem-estar e o proveito dos utentes, porque se proíbe a abertura deste tipo de estabelecimentos a menos de 100 metros de qualquer unidade de saúde pública? Uma terceira questão: a lei da concorrência foi salvaguardada, tanto em Coimbra como em Leiria? Perguntas difíceis mas que não ficam além de todas as conjecturas.

Só em Portugal existem farmácias privadas no interior de hospitais públicos – um conceito engenhoso, à primeira vista, mas com algumas sombras e anfractuosidades. A promiscuidade assumida entre capitais públicos e privados, entre economia e saúde, sobressalta-me (sou algo timorato); julgo, de resto, opondo-me a Eduardo Galeano, que o meu pessimismo não pode esperar por dias melhores.
(Ontem, 04/03, no Jornal de Notícias)

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4.3.09

Estéticas da Morte #cinquenta e um

Uma pazada de terra em cima da madeira, um cigarro. Uma pazada de terra em cima da madeira, uma mija. Uma pazada de terra em cima da madeira, uma hesitação. O cansaço. Aldo deita-se na terra, em cima da madeira; adormece, o dia vai cumprido.

Um homem a dormir numa cova, deitado na terra, em cima da madeira, parece um homem morto. Mas este ressona muito.

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Imponente e voluptuosa; vulgar, claro

Todas as famílias católicas têm um membro apóstata e, muitas vezes, é o mais interessante.
(Evelyn Waugh, Reviver o passado em Brideshead, p. 325)

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3.3.09

Pessimismo antropológico

Na sessão de ontem de Os Livros Ardem Mal, Osvaldo Silvestre relembrou a ditosa sentença de Eduardo Galeano, «Deixemos o pessimismo para dias melhores»; um sorriso embaraçado permeou o foyer do TAGV (eu reparei nisso), acomodou-se habilidosamente em quase todas as fisionomias presentes (algumas bonitas, mas poucas) e, finalmente, deu lugar a uma certa incompreensão – eu diria mesmo obtusidade – dos circunstantes. Silvestre (um «moderador cultural» perspicaz e incisivo, como não há outro neste país), concentrado em Mário de Carvalho, o «seduzido» de ontem, não terá percebido o conseguimento ontológico da sua rememoração, e a sua importância: afinal, o pessimismo é algo que nos assinala e distingue enquanto humanos (é terrível sabermo-nos mortais). Não o esqueçamos: «A natureza humana não suporta tanta realidade». A inflexibilidade poética de Quintais (um auto-reconhecido «pessimista antropológico») recusa, de certo modo, Galeano, e coloca o tom nas fragilidades do nosso córtex reptiliano. No fim do dia somos apenas macacos depilados, assustados com a possibilidade (com a certeza) da morte.

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2.3.09

Remorso do homem português

No banco do IC, treslendo o jornal do companheiro do lado, agarro a estúpida franqueza destas palavras (cito sem grande fidelidade, mas o sentido é este): «Se tivéssemos sido nós a ir à lua não tinhamos deixado só umas pegadas». Gaba-te cesto... O meu pai espera-me na estação. Afectos e cumprimentos (trocamos beijos). Depois, as mortes: o João Caneiro (rapaz de «cinquenta e um», como o meu pai) e o Nino Vieira (o meu pai «combateu» na Guiné-Bissau). «Vou» online: morreu, sim, nada a fazer; nas ruas de Bissau, calmaria - e alguns, poucos, tiros. Penso em Angola, em Moçambique, em Timor, na Guiné outra vez. «Se tivéssemos sido nós a ir à lua...» Não quero pensar nisso: «The horror! The horror!»

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