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5.3.09

Passeio Público

(Hospital dos Covões, farmácia dos Covões)

Em primeiro lugar, uma fantasia. Imaginemos (não é difícil) que são quatro da manhã e que nos encontramos no serviço de urgência de um hospital. Estamos exaustos, irritados e, sobretudo, doentes. Com dores, indisposição, qualquer coisa não muito boa. Já sabemos o que nos aflige e até já temos a prescrição com os fármacos que podem melhorar a nossa condição. Podemos ir para casa – só falta mesmo encontrar uma farmácia de serviço que, com alguma sorte, há-de providenciar os medicamentos que nos foram indicados. Uma enorme, uma colossal maçada. Consideramos, pois, a utilidade e a conveniência de uma farmácia de venda ao público nas próprias instalações do hospital; seria algo quase divino, e no mínimo maravilhoso.

Abandonemos os devaneios. No Hospital de Santo André, em Leiria, e no Hospital Geral do Centro Hospitalar de Coimbra (CHC), é já possível aviar rapidamente o receituário, 24 horas por dia, 365 dias por ano (feriados incluídos). A nova farmácia dos “Covões”, resultante de um concurso público (encarniçado, como se deseja) cujo vencedor foi um consórcio formado pelas três farmácias da margem esquerda (acasos da fortuna), não só facilitará a vida aos utentes como criará empregos, seis ou sete postos de trabalho, na “margem esquerda”. Tudo parece perfeito e irrepreensível.

Contudo, uma suspeita apical, primária, espicaça-me a consciência. Uma primeira questão (com adenda): porquê uma farmácia de capitais privados (repito: de capitais privados) num hospital público? Porque não pensar na reconversão das chamadas “farmácias hospitalares”, criando uma valência de atendimento ao público? Uma segunda questão: se o objectivo cardinal destas farmácias é o bem-estar e o proveito dos utentes, porque se proíbe a abertura deste tipo de estabelecimentos a menos de 100 metros de qualquer unidade de saúde pública? Uma terceira questão: a lei da concorrência foi salvaguardada, tanto em Coimbra como em Leiria? Perguntas difíceis mas que não ficam além de todas as conjecturas.

Só em Portugal existem farmácias privadas no interior de hospitais públicos – um conceito engenhoso, à primeira vista, mas com algumas sombras e anfractuosidades. A promiscuidade assumida entre capitais públicos e privados, entre economia e saúde, sobressalta-me (sou algo timorato); julgo, de resto, opondo-me a Eduardo Galeano, que o meu pessimismo não pode esperar por dias melhores.
(Ontem, 04/03, no Jornal de Notícias)

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