Passeio Público
(Reconversões forçadas)
O passado, aquilo que nos resta, luta invariavelmente com o esquecimento. Há muitos anos, talvez demais, que se escreve teimosamente sobre o destino do antigo Teatro Sousa Bastos, na alta de Coimbra. Talvez as palavras não distingam o desejo íntimo daqueles que não querem perder o seu próprio passado, Sousa Bastos incluído, daqueles que lutam pela história que persevera ainda em cada memorável edifício que tolera o “progresso”, as “remodelações”, e as “reconversões”, o que, para o caso, pouco importa – no fim, todos correm para o mesmo lado.
A ruína tranquila do Sousa Bastos conheceu recentemente o seu destino: vai ser “transformado” numa residência aberta a estudantes e turistas. Não será convertido num “hotel de charme”, ou num prédio de habitação, mas numa “unidade de alojamento local”, com centro de convívio, espaço para associações culturais e 35 quartos para estudantes integrados no programa Erasmus.
De resto, recordamos o final garantido pelo IGESPAR ao antigo convento de São Domingos (datado do séc. XIII), situado sob a Avenida Fernão de Magalhães, e louvamos a sorte do edifício do Teatro Sousa Bastos. Apesar de tudo, a “reconversão” é preferível à obliteração - e uma “unidade de alojamento local” sempre garante a dignidade que um parque de estacionamento não possui.
Os cães de Deus não guardam os seus. Uma simbiose perfeita entre o reordenamento urbano e o património histórico edificado parece ser uma utopia. É algo que, nas palavras do subdirector do IGESPAR, João Cunha Ribeiro, se situa no “domínio do absurdo”. É possível. As utopias são “tigres no papel” e perigosos desvios da normalidade do “progresso” que, como bem sabemos, passa pela construção de mais parques de estacionamento.
À primeira vista, as coisas parecem claras: na balança da realidade, pesa mais o futuro que o passado, e mais o “progresso” que a memória. Não esqueçamos, porém, a rigorosa irreversibilidade das decisões tomadas no presente. O que decidirmos apagar agora, não mais voltará.
(Ontem, 25/o2, no Jornal de Notícias)
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