(Anatomia de um certo crime)
Não sei o teu nome, penso. Empurro-te para esta fossa, cavada à pressa com uma pá embotada por mãos prévias e inocentes. Deslasso os teus cabelos com um harmonioso remate «à esquerda» (lembrei-me do Futre), amoldo as tuas carnes flácidas e supérfluas (vejo bem que criavas barriga) às paredes térreas da derradeira cama. É estranho, não sei o teu nome. Não sei sequer porque te matei. Não foi, de certeza, pelos cinco euros que transfiro da tua carteira para a minha boca. É triste (acho eu): a tua morte não valeu mais do que 3 ou 4 litros de gasolina.
Isto é ficção. O momento cosmogónico, arquetípico, da violência pode subsumir-se a isso: a uma anatomia de um crime em forma de desabafo ficcional, a uma deriva estética que não acrescenta nada à difícil arte de iludir, roubar e matar.
Os assaltantes surgem pelas quatro da madrugada. O carro é um Honda (Civic) de cor negra. Roubado, algumas horas antes, nos arrabaldes de Coimbra. Encapuzados, dispensados da identificação, tentam assaltar as bombas de gasolina situadas no Vale das Flores. Perto do Coimbra Shopping. Os assaltantes surgem armados – como era costume no Texas de John Ford. Puro vintage. O funcionário foge, é essa a sua obrigação: salvar a pele, em primeiro lugar. Acautelar a vida. Admitem-se disparos. Um tiro, apenas? Não. Dois. A polícia chega, enfim. O negrume do alcatrão oculta o rasto do Civic. A noite amolece numa quietude melancólica.
Isto não é ficção. Temos medo do que lemos. O mundo encarrega-se de apascentar os tratados de criminalidade com (nada menos que) a realidade – e a violência, é certo, é parte constante do real.
Chesterton avisara-nos já que a realidade é mais estranha que a ficção. Um olhar de soslaio sobre os jornais diários valida esta ideia, mesmo que o enfado da leitura embote os nossos sentidos sobressaltados, o crime reproduz-se diariamente nas laudas dos periódicos e nos rodapés dos telejornais. Se Balzac criou o século XIX, os jornais e as têvês criam as ondas de crime, os arrastões e o carjacking, manipulam alegremente o perfil da violência no século XXI.
Entretanto, nada acontece. As estatísticas não mentem. Manipulam, à sua maneira, a verdade. Afinal, o que é a realidade?
Não é, com certeza, o ramalhete de horrores que desfila nas televisões. Não se define (o rigor das nossas intenções é absolutamente necessário) na mansidão reiterada das estatísticas oficiais. A realidade subtrai-se a toda as possibilidades de figuração exacta. O mundo é uma coisa, o que dele se mostra é outra. A perspectiva foi inventada pelos pintores flamengos para isso mesmo, para mostrar que se pode ver a mesma coisa de maneiras radicalmente diferentes.
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