Estéticas da Morte #cinquenta e oito
As obrigações familiares e um temperamento algo timorato, sempre despropositado no momento de arranjar desculpas esfarrapadas, levaram-me a aceitar o convite e, desgraçadamente, a comparecer no casamento de minha prima, H. Cosme da Silva (o «H.» é de Elena). A cerimónia, como de costume ao sábado, decorria sem surpresas ou espanto, se ressalvarmos a entrada em cena do decote generoso da flamejante G. de Castro (o «G.» é de Joana), a madrinha, durante a epístola de Paulo aos Coríntios, que provocou pelo menos dois «Ah!» de aprovação e um «Oh!» de inveja, até àquela parte da missa em que o padre questiona a assistência relativamente a impedimentos, putativos o mais das vezes, à consumação do matrimónio. Nesta altura a porca torceria o rabo, se porca existisse por perto. Pela primeira vez na história, acho eu, alguém se chegou à frente e disse de sua justiça. O infeliz amava, vejam bem para o que lhe deu, a minha prima H., e por isso falou. Não contava, porém, ou não sabia, o que é muito mais provável, que o noivo era da Guarda (Republicana) e que aquilo é gente que sói carregar as armas para as festas, para as descarregarem para o ar, como fazem os árabes quando os americanos espirram, ou o Benfica ganha o campeonato. Que o tenham morto logo ali, vá lá, é compreensível e até louvável, mas ao menos que me dessem tempo de tirar a Leica do saco. O álbum de fotografias, digo-o com mágoa e sem pensar no brasileirismo, ficou «meio mixuruca»: uma mosca esborrachada no penteado da minha tia S. (o «S.» é de Célia) não leva metade da graça de um corpo surpreendido por duas dúzias de balas.
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