Sou cristão de matriz católica, daqueles relaxados. Não sou dado a ritos mas vou comparecendo às cerimónias etnograficamente recomendáveis [Missa do Galo e de Domingo de Ramos, funerais, baptizados e casamentos]. Já fui ao Santuário de Fátima e não posso dizer que tenha ficado indiferente ao lugar. Há ali qualquer coisa, que postulo indefinível, que agita o coração cá dentro.
Qualquer coisa que vai além das pequenas e grandes tragédias que se espraiam sobre os joelhos doridos dos peregrinos ou da incomodidade que provocam as centenas de lojas de lembranças e brindes religiosos (e não só). Toda a gente chora, clama e pede, sem que ninguém saiba muito bem porque chora, clama e pede. É por tudo, talvez. Como disse, sinto mas tenho dificuldades em compreender totalmente.
É que, apesar de cristão, nutro sentimentos antinómicos e contraditórios em relação ao fenómeno religioso de Fátima. Se, por um lado, pressinto na religiosidade que envolve as “aparições” um timbre popular que se aproxima da crença “real”, sentenciosa e não corrompida pelas hierarquias; por outro, recuso a apropriação da fé para fins lucrativos, evidenciada pela miríade de lojas e de vendilhões que tomaram de assalto as imediações do santuário. Repugna-me ainda a recidiva expressão de fé através do auto-sacrifício extremo (o mesmo não é dizer que repugno as pessoas que, livremente, escolhem esta maneira de manifestar a sua fé). Noto que Fátima, enquanto fenómeno mundial de religiosidade, provoca nas pessoas reacções extremas, de aceitação ou de rejeição.
Os temas fatímicos são, actualmente, muitos e diversos. A Cova da Iria de hoje não é certamente a mesma que acolheu as primeiras “aparições” em 1917. Fátima reinventa-se. Tanto ao nível da ideologia como da própria arquitectura. Muitas vezes sob o sortilégio do arrebatamento estéril, da lágrima de êxtase e do “kitsch”.
No passado dia 13 de Outubro foi inaugurada, no Santuário de Fátima, a Igreja da Santíssima Trindade. O imponente edifício, projectado pelo grego Alexandros Tombazis, assim como a Cruz Alta, imaginada pelo alemão Robert Shad, foram alvo de avaliações díspares por parte dos peregrinos. Se a nova igreja recebeu elogios de quase todos, a grande cruz, na sua concepção arrojada e modernista, não foi bem assimilada pelos peregrinos que iam sendo entrevistados ad nauseam por todos os canais de televisão. “Onde é que já se viu Jesus Cristo com a cara quadrada?”, perguntava uma indignada senhora de negras vestes.
A questão urbanística e arquitectónica não é de agora, porém. Fátima é uma manta de retalhos. A cidade cresce sem que se saiba muito bem como. O casario é imponderado e desconexo. Os locais de culto também. O “kitsch” impõe-se esteticamente. O que vale é que os fiéis voltam sempre.
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