Ontem, no Jornal de Notícias
Eu lembro-me bem como era. Chegávamos ao recreio por volta das 8:30h, abandonávamos a mochila no fim da fila encarreirada e juntávamo-nos aos mais madrugadores que, no pátio de terra batida, davam uns toques na bola de serapilheira (a de couro, essa, só via o sol em dia santo). Às nove em ponto dávamos os bons dias à senhora professora e sentávamo-nos em desconfortáveis cadeiras de madeira. Deletreávamos as primeiras letras, conjugávamos os verbos mais simples e entoávamos, trementes, a ladainha da tabuada. Éramos muitos – mesmo muitos –, acomodados na velha escola primária edificada à sombra do projecto educativo do Estado Novo.
Entretanto, a metamorfose foi excessiva. As escolas já não são primárias mas do 1.º Ciclo do Ensino Básico. As crianças são, cada vez mais, uma invulgar e extravagante silhueta nos átrios de recreio. É, pois, normal (e desejável?) que as escolas com poucos alunos encerrem: as turmas excessivamente pequenas enredam negativamente o rendimento escolar e, obviamente, são verdadeiros empecilhos económicos. Na verdade, as escolas cerram as portas a compasso da desertificação e da baixíssima taxa de natalidade. No interior do país, sobretudo, mas também nas aldeias que ladeiam as grandes cidades do litoral. A agonia destas escolas pode ser protelada até ao derradeiro aluno, a expensas da economia nacional, mas, a prazo, a sua morte é certa.
O Governo pretende fechar, até ao fim deste ano, cerca de 900 escolas do Primeiro Ciclo do Ensino Básico. Mais de metade (600) situam-se no Centro do País. Os distritos mais afectados deverão ser os de Viseu e da Guarda, mas o distrito de Coimbra, com 17,3% de escolas com menos de 10 alunos, também verá muitos estabelecimentos de ensino básico encerrados. O Governo deverá ainda encerrar, até 2009, mais 4500 escolas do Primeiro Ciclo do Ensino Básico. A ministra da educação, Maria de Lurdes Rodrigues, já exteriorizou de forma perspícua e clara esse desígnio. As populações, como seria expectável, protestam e resistem como podem mas a tendência parece ser irreversível.
Os modelos educativos não são murados, constituem-se numa rede entretecida intimamente no âmago social e cultural em que vivemos. As escolas primárias, como anteriormente a igreja e o seu adro, são entidades de significação vasta: não são apenas um referencial cognitivo – o local onde se aprende a ler e a escrever – são o verdadeiro coração das aldeias. E os habitantes dessas povoações, que expiram lentamente, sitiadas pelos vultos do Outono e da solidão, percebem que não há redenção ou salvação quando a “sua” escola encerra. Por isso é que, mesmo sabendo-se impotentes, contestam com tanta veemência. A extinção da escola primária (a multiplicação dos matos nos antigos pátios de recreio, os vidros quebrados e os brancos esmaecidos das paredes) convoca iniludivelmente a morte simbólica da aldeia. E ninguém gosta de contemplar as ruínas de si mesmo.
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