Passeio público
Quinta-feira, 27-09, no Jornal de Notícias
Por estes dias paira uma espécie de véu negro sobre a Alta de Coimbra. Não falo sequer de nuvens escuras e trovoadas, parece que o sol agora veio mesmo para ficar. Refiro-me aos “doutores” (esvoaçantes capas negras) e aos desventurados (mas felizes) caloiros que os seguem bovinamente. Ao longe, apercebo indistintamente as cantorias desafinadas, as ordinarices de inspiração pimba, a monótona repetição de vulgaridades em actos e palavras. O meu pensamento convoca ainda, numa mescla despudorada, alegres idas ao vinho, humilhações e vitupérios, atitudes totalitárias latentes, gargalhadas e divertimento, olhares de reconhecimento, a confusão dos penteados destruídos. É rápido o destino dos caloiros, mais que todos sofrerão (dispensemos Aquiles desta reflexão). A praxe é dura, mas é a praxe.
Tenho a mão injusta. Julgo a praxe com a vantagem do tempo e da maturação das ideias. Quando entrei para a Universidade a praxe foi apenas o festivo momento em que conheci gente nova, o decisivo momento que simbolizou o meu sucesso enquanto estudante que conseguiu aceder a um curso superior. O momento em que todos ficaram a saber que o crime foi bem sucedido. Mais tarde, já no campo dos que vestiam de negro, a praxe continuou a funcionar apenas como um divertimento inofensivo, como uma ocasião iniciática.
Libertando-me de qualquer preconceito e interpretação crítica da praxe, reconheço-a, enquanto costume ou hábito institucional (recordemos que as praxes são comuns noutras instituições, como o exército), como um projecto ritual de iniciação. São ritos que marcam o início de uma mudança radical de regime ontológico e estatuto social do neófito (isto é, o caloiro). E que podem, de facto, facilitar a integração dos novos estudantes universitários nos usos e na “tradição” que a velha Universidade carrega, como um fardo e como uma bênção, em simultâneo.
Não sejamos, porém, ingénuos. Há praxes divertidas (em que todos se submetem voluntariamente) mas também há práticas de humilhação reiterada e mesmo de violência física e psicológica. Quando a praxe se torna o anfiteatro simbólico da arrogância, do totalitarismo e alienação, onde proto-ditadores e ex-caloiros vingativos celebram desmandos e malbaratam frustrações, toda e qualquer ideia de “tradição”, respeito e liberdade se estilhaça. O mesmo se pode afirmar quando a praxe reifica a ideia de hierarquia e de sujeição à ordem estabelecida ou quando reproduz os preconceitos sexistas, racistas ou homofóbicos da nossa sociedade.
Ninguém tem o direito de acabar com a praxe. Mas também ninguém tem o dever e o compromisso de ser praxado, apenas porque alguém lhe diz: “é assim!”. Há sempre outras maneiras de integrar as pessoas em novas realidades.
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