Passeio público
Ontem, no Jornal de Notícias
Terreiro da Erva, Coimbra: um rosto por nomear, assombrado e de cor imprecisa, avizinhou-se de mim no limbo pardacento do estacionamento e, com a voz limpa e vítrea, sussurrou profunda ladainha de uma vida de desesperança. Falou, discorreu longamente sobre a sucessão ininterrupta de martírios e padecimentos que era o filme da sua existência. Toxicodependente, seropositivo e sem-abrigo, emblemas maiores de uma identidade desfiada pela miséria e pela mentira. Mais vale admitir esta como verdade e esquecer para continuar. Tenho a certeza que a sua vida era bem pior que aquela descrição esforçada. Sei que existem formas de sofrimento intransponíveis para uma configuração falada, verbalizada. Como pode o frio ser traduzido numa palavra, numa frase? É preciso senti-lo. Deixá-lo subjugar o corpo.
Auditório da Reitoria da Universidade: são colchões e cobertores, são homens e mulheres, abrigados pela fachada vagamente iluminada. São quartos sob as estrelas, se quisermos ser poéticos (e insensíveis, indiferentes). São os sem-abrigo que concertam a sua vida e os seus parcos haveres num espaço junto ao auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra. São cada vez mais, desde que chegaram os primeiros há dois ou três anos. O Gabinete de Comunicação e Identidade da Universidade de Coimbra assevera que a situação comovente e trágica que afecta cada uma daquelas pessoas não pode ser resolvida pela instituição universitária. O espaço ocupado pelos sem-abrigo é público, pelo que a Universidade vem rogando o auxílio de instituições sociais desde que o problema foi detectado. Com pouca sorte. São tantos assim que já ninguém quer saber.
O frio, a intempérie, a fome, a tristeza sincopada dos dias. A desdita que toca irremediavelmente uma panóplia de pessoas que temporariamente – ou não – tem a rua como única casa. São os sem-abrigo mas também são os mendigos, os toxicodependentes, as prostitutas, os vagabundos. Uma repleção de termos que descrevem condições de vida alicerçadas quase sempre na exclusão, na pobreza e, por vezes, na inconstância residencial.
O nosso olhar sobre esta alteridade tornou-se passivo. Já nem sequer nos incomodam, fazemos de conta que não existem. A deambulação sem fim nem propósito, a mendicância, os olhares andrajosos não tocam mais os corações de quem segue com pressa para o conforto trivial do lar. Os sem-abrigo já nem sequer são “corpos estranhos” no nosso caminho. São corpos invisíveis. A sociedade meteu-os debaixo do tapete da própria alma.
Mas eles existem, com os seus colchões bolorentos e a sua fome antiga. Acomodam-se, quase em segredo, junto aos nossos locais de trabalho, de diversão, de estudo. Estão lá, nós é que não os queremos ver. Isso mostra bem no que nos tornámos enquanto sociedade. Nem esmola envergonhada, nem um minuto para ouvir uma recordação de quem vive só. A miséria somos nós.
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