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30.9.09

Arrows of desire #coda


(Guido Reni, São Sebastião, Museu do Louvre, Paris)

Que eu saiba (e eu sei muito, porque tenho acesso à Wikipédia) toda a gente tem as suas «vulnerabilidades». Até Aquiles, que era filho de deusa e bom guerreiro, sucumbiu a uma flecha bem apontada à sua «vulnerabilidade». Sebastião, que entre duas mortes se excedeu nas bocas com que presenteou Diocleciano, não foi capaz de se manter calado: foi essa a sua «vulnerabilidade». Cavaco, como o mártir, devia ter permanecido de boca fechada. O Presidente da República não possui o dom da palavra, é essa a sua maior «vulnerabilidade».

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29.9.09

Arrows of desire #2


(Guido Reni, São Sebastião, Musei di Strada Nuova, Génova)
Isto é importante: a iconografia de uma «quase-morte» é aceite por quase todos como a iconografia de uma «bela-morte». Sebastião não morreu trespassado pelas flechas dos legionários romanos. Providencialmente, foi salvo por Santa Irene, boa católica e hábil enfermeira, como já não as há. O mártir finou-se mais tarde, e de maneira mais poética: foi morto à paulada e o seu corpo encontrou finalmente a paz no meio do esterco da Cloaca Maxima. Nas pinturas de Reni, o corpo de Sebastião atinge-nos, pois, desse lugar ambíguo «entre-duas-mortes» e a sua lividez falseia, em concomitância, a irrelevância da vida e a certeza da morte.

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28.9.09

Arrows of desire


(Guido Reni, São Sebastião, Museu do Prado, Madrid)
É possível que a tensão homoerótica no(s) «São Sebastião» de Guido Reni seja tão profunda e dilacerante que não poucas vocações heterossexuais se arruínem por motivo tão simples como a observação da(s) obra(s) num catálogo barato de museu. Afinal (o facto é incontroverso), o adolescente Mishima experimentou o seu primeiro orgasmo, que suponho compensador (e não o são todos?), quando contemplou, aprazido e de olhos em bico, uma das sete telas que Reni destinou ao santo trespassado. Reni gostava pouco de fêmeas – o que explica muita coisa. Viveu 55 anos com a mãe e, depois da morte desta, não mais permitiu que uma filha de Eva lhe lavasse a roupa interior. Daí ao torso marmóreo de Sebastião, vezes sete, e ao desvario dos cabeleireiros com o «coitadinho do mártir» foi um pequeno passo.
Coitado do mártir? Com certeza. Perfurado mas puro? Anti-erótico ou homoerótico? Tudo é possível. As hipóteses sucedem-se, como os dias num ano, mas pouco me importa o desfecho hermenêutico, seja ele qual for. Se preferirem, reduza-se tudo às «arrows of desire», aos caracóis do cabelo e ao pano branco de linho, enrolado como se residisse no meio de um furacão. As possibilidades interpretativas são quase muitas, pelo menos sete. Que sobre isto se redijam longas teses, e enfadonhas quanto baste – já li algumas e abdico de ir além de uma breve exposição das possibilidades. Felizmente, prefiro o «Martírio de São Bartolomeu», de Jusepe de Ribera: mais feio, mais desengraçado, mais verdadeiro.

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Esquerda vs. Direita


(Comès, Silêncio)

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27.9.09

Total isenção e imparcialidade

Deixem-me chorar descansado, impenetrável ao conforto hipócrita das vossas mãos. Este Benfica ainda me há-de matar. Ou pior: ganha o campeonato. E ainda temos o Cavaco e os fantasmas dos cadernos.

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26.9.09

Interest in cattle

Although cattle have many uses they are chiefly useful for the milk they provide. (E.E. Evans-Pritchard, The Nuer, pág. 21)
Reparem na sugestão subliminar da expressão «cattle have many uses». Os pastores são todos iguais, e o gado tem muita e boa serventia, parece querer dizer-nos Evans-Pritchard. Em África ou em Pitões das Júnias, desde que em sítio ermo e propício à ordinarice.

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25.9.09

Passeio Público

(Santos da casa)
A campanha eleitoral para as eleições legislativas termina hoje, felizmente. Falou-se pouco, e com desconhecimento, do que realmente interessa: a crise da economia, da educação ou da justiça. Não é difícil assacar a alguém a responsabilidade por este alheamento quase generalizado face aos problemas fundamentais do país. Sem que seja necessária uma meditação profunda (algo que me acontece mais vezes do que menos) surge na minha cabeça o nome do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Ele foi a estrela injustificada desta campanha que ora finda.

A política portuguesa está menos sentimental e, porventura, mais ardilosa e capciosa. Prosperam as condições que facilitam o surgimento de fábulas manhosas, ideadas por frouxos leitores do esplêndido Maquiavel, que o tresleram e adulteraram, e caucionadas por comentadores que partilham o mesmo território ideológico e um espírito pouco sagaz. O “caso das escutas” (como, aliás, o fabulário em redor da “asfixia democrática” e das “agendas furtivas de coligação pós-eleitoral”) abastardou o combate eleitoral, que se afastou irremediavelmente da discussão dos temas importantes ou da competência política dos candidatos.

Na campanha em Coimbra, perante a impossibilidade de recorrer a “não-assuntos” como armas de arremesso (mas não deixamos de notar o levantamento da lebre “Rui Teixeira, juiz”, pelo Professor Paulo Mota Pinto), os esforços da “política (de) rasteira” concentraram-se na naturalidade dos candidatos e na sua ligação, ou não, à cidade. Para alguns, só os santos da casa é que fazem milagres.

A Dr.ª Ana Jorge é a única cabeça de lista que não tem qualquer ligação com Coimbra: não nasceu na Sé Nova, não estudou na Universidade, não trabalhou nos HUC. Fraco curriculum para apresentar aos fundamentalistas do “jus soli” e do “jus sanguini” (em concomitância), aqueles que entendem que os candidatos por Coimbra só podem ser recrutados entre os filhos da terra, com ligações afectivas, familiares ou místicas à velha cidadela junto ao Mondego – na tradição do ideário de aversão ao Outro, ao “estrangeiro”. Parecer-me-ia mais correcto que se analisasse a capacidade política de Ana Jorge (que é muita), e não o seu local de nascimento. O problema é que isso parece-se demasiado com a política séria.
(Hoje, 25/09, no Jornal de Notícias)

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24.9.09

Americana


(Andy Moore & Tony Parker, The Exterminators)

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23.9.09

indecisão

são dezassete e cinquenta e cinco quase dezoito, muito obrigado, não tem de quê, segue a tua vida que eu sigo a minha, o dia ainda não declina apesar das horas e é cedo para tanta indecisão.

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22.9.09

Não fui eu


O Bloco tem as mulheres mais bonitas da política portuguesa, diz-se. A CDU tem o homem mais charmoso da política portuguesa, diz-me, sentada ao meu lado, no sofá vermelho (a cor!, a cor!). O CDS-PP tem o homem mais ritmado da política portuguesa, diz o próprio. O PS não tem homens nem mulheres, mas anjos/demónios (riscar o que não interessa), diz o DN e o Público. O PSD tem o casanova da política portuguesa, diz a imprensa cor-de-rosa. A esperança devia ser a primeira a morrer.

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21.9.09

Saber quem tem ideias

Qualquer conhecedor da vida sabe que é muito estreita aquela faixa verdadeiramente fecunda entre a liberdade de pensamento arrojada e a fuga temerosa ao pensamento.
(Robert Musil, O homem sem qualidades, pág. 505)

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20.9.09

Dr. Johnson


O Francisco faz a pergunta certa. Uma resposta, entre as muitas possíveis, encontra-se aqui.

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19.9.09

Passeio Público

(Por Coimbra)

“Por Coimbra não vai nada, nada, nada? Mas mesmo nada? Tudo!” Parece slogan eleitoral (e para isso foi recentemente amputado) mas a história destas palavras é mais antiga, e eleva-se definitivamente sobre as futilidades insistidas nos cartazes de campanha. Estas palavras pertencem à academia de Coimbra (se é que se pode falar de pertença e posse) e não, como parece ocorrer a alguns, ao indivíduo A ou ao partido B.

De facto, a realidade parece opor-se a este postulado fundamental. A utilização de uma parte da expressão relacionada com um dos gritos tradicionais da academia (a saber: “Por Coimbra”) pela candidatura de Pina Prata motivou uma queixa à Comissão Nacional de Eleições por parte da candidatura do PSD/CDS/PPM. Carlos Encarnação e a sua equipa insinuam-se como os legítimos senhores de tão populares palavras. Afinal, usam-nas em campanha desde 2001. Justifica-se a sua propriedade por usucapião: o uso fixa o dono.

Carlos Encarnação e Pina Prata disputam algo que não é pertença de nenhum dos dois. Não o fazem por falta de imaginação ou plágio (o chavão já havia sido utilizado pela candidatura de Mendes Silva, pelo Partido Socialista, em 1982) mas porque partilham a mesma concepção política para Coimbra. Porque apesar de inspirarem posições antagónicas são fundamentalmente iguais.

O que fazer com as palavras? Que as palavras interessam já o havíamos dito, mas talvez possamos pendurar a esse lugar-comum ainda um outro: as palavras revelam ao mesmo tempo que ocultam. Esta é, seguramente, uma trivialidade paradoxal mas justa. O significado veiculado pelas palavras é fluído e poroso, impreciso e vago, carcomido incessantemente pela mudança de interlocutores e interpretações.

No entanto, alguma coisa permanece imutável no caos da comunicação, passível de ser escrutinada e comentada. Coimbra não precisa destes gémeos desavindos mas de uma verdadeira alternativa de esquerda. A responsabilidade de trazer a política a sério para a campanha cabe agora ao Partido Socialista, ao Bloco de Esquerda e ao Partido Comunista.
(Ontem, 18/09, no Jornal de Notícias)

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17.9.09

E um protector solar também dá jeito #doze


(Plage de Lespicier, França)
(1) (2) (3)(4)(5)(6)(7)(8)(9)(10)(11)

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15.9.09

Passeio Público

(Pais e seus amados filhos)

A identificação dos problemas fundamentais do país não é problemática – não percamos tempo ou palavras com a gravidade tangível da realidade -; o verdadeiro problema está no facto de não sabermos o que fazer com tanto desespero. É fácil sepultar a nação sob os escombros da economia, da justiça ou da educação. O país é pequeno (é mesmo muito pequeno) e não é assim tão complicado fazer a sua autópsia. E, contudo, não há quem chame de novo o Lázaro.

É de bom-tom reprovar a silly season, e as suas manifestações bronzeadas. O país é uma revista cor-de-rosa; não é um ornitorrinco, mas não é por isso que deixa de ser estranho. E Deus também se ri das suas criações. Mas o Verão esmaece, finalmente. A vivência liminar na Biblioteca Geral substitui a parvoíce no areal. É uma questão de educação.

É tudo uma questão de educação: a economia, a justiça e a própria educação, a ressurreição do Lázaro, a praia e o ornitorrinco. Parece-me compreensível a submissão da justiça e da economia à educação. O sucesso de um país firma-se nas suas políticas educativas. Que não são, lamento dizê-lo, couto privado dos governos e professores.

Os pais e os alunos são actores principais neste teatro da decepção, e ambos por alheamento. O desinteresse dos alunos pela aprendizagem (o ensino tem que regressar à transmissão de conhecimentos, e não persistir no estabelecimento acrítico de programas lúdicos) enforma o grande desafio que toma as universidades, como a de Coimbra, em que a responsabilidade da história é mais um pecado que uma bênção.

O mesmo se pode afirmar relativamente à indiferença parental perante a educação dos filhos. “Não fique à espera que a escola dos seus filhos feche para se interessar por política”. Este slogan (relativo a um dos debates promovidos em Coimbra pelo Jornal de Notícias, no âmbito das eleições legislativas) pode inserir numa qualquer tradição sapiencial. É quase óbvio, mas por vezes as verdades mais evidentes são aquelas que mais facilmente esquecemos.
(04 de Setembro, no Jornal de Notícias)

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14.9.09

Novembro


[Joaquim von Sandrart, November, 1643, Oil on canvas, 149 x 123,5 cm, Staatsgalerie, Schleissheim]

A composição híbrida - paisagem, natureza morta e retrato - impõe desde logo a aporia do olhar. Por outro lado, a abnegação melancólica do caçador, as folhas destroçadas pelo vento, a trela curta que segura os cães e o castelo nas funduras do vale não se compadecem com a dúvida e assinalam o voo destrutivo do tempo.

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6.9.09

Milito, dito «el sencillo»

Um bêbedo passeou-se na calle, em mijo distraído. Aí viu-o. Nu, ou desguarnecido. O peito feito num zero, cavado como se terra, aberto até muito dentro do corpo. Milito sacudiu-se, mesmo borracho. Manha de tomates, e antiga. Pregou um olho na ruína: sangue distorcido, juízo antecipado. Dali haveria de vir um morto. Chamou ambulâncias, não ouviram. Rezou. A garrafa esvaziava-se, esqueceu a oração. Revirou os olhos, encontrou o peito outra vez. Um zero maior que um dez. Grande, roxo crepúsculo. Chamou ainda, qualquer coisa. As coisas não ouvem, só algumas pessoas. Não estavam. Veio dali o frio. Deu-lhe, sem camisola era de esperar. Ainda bem, ia-se embora.

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2.9.09

Os livros (já) não ardem mal

Comecei a ir, comecei a gostar (muito) e, já depois de me ter mudado para Lisboa, fui muitas vezes de propósito a Coimbra por causa deles. Acabou. Voltem rápido, que isto de interromper uma coisa tão boa não se faz nem ao pior dos inimigos.

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Embalmed


O arroz serve-se frio. A mesa inclina-se sobre a minha boca. Um gesto de espanto (ou a dor) estremece o meu intestino. O ídolo mantém-se nos pés de ouro, revela-se no barro do coração.

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1.9.09

Voltou