(A lata de uma festa)
Setembro acabou há muito. Outubro fina-se daqui a pouco. Os regressos a Coimbra estão consumados. Os caloiros, amansados pela tosquia pateta da praxe, vivem já na esperança do festim académico que lhes há-de dar alguma trégua. Amanhã, tudo o indica, começa a Festa das Latas e Imposição das Insígnias. A Latada, como é carinhosamente reconhecida por família e amigos.
As mudanças anunciadas para este ano não escapam a um certo ar inofensivo de arrumo cosmético. Na Queima das Fitas, com certeza que se recordam, a adulteração foi maior, mais impositiva. Nem melhor, nem pior, afinal. A festa começa com a tradicional Serenata e alonga-se, interminável, por quase uma semana.
A Latada, para além de todos os excessos que a maculam, determina simbolicamente o reinício das aulas na Universidade de Coimbra. Sempre foi assim – pelo menos desde os anos de 1950. Todos os anos se renovam os gestos fundados por outros num passado mais ou menos distante.
Todavia, o passado já não existe – é com tristeza que o digo. É um porto a que não se volta. As pessoas consomem-se na nostalgia do que foram «aqueles idos tempos», afundam-se nessa esperança inútil de que o tempo volta para trás; e, no entanto, a vida pode ser mais simples e promissora que essas comemorações melancólicas e tudo o que as pessoas deviam fazer era olhar para o que têm defronte de si, para o desafio que as espera num episódio mais à frente.
A vida é uma sucessão ininterrupta de rezas e chavões, de datas festivas ou desprezíveis, de sementeiras e colheitas – até que, um dia, tudo acaba. Perante esse desfecho forçado, sobra ao homem o asilo na solidez da repetição.
Conscientes de que o futuro, afinal, se cava na terra e depois se tapa com mármores, as pessoas não gostam de fechar o ciclo que os afasta irremediavelmente do ventre inicial, não consideram, e muito menos apreciam, uma separação de toda a ilusão retrospectiva. Após as memórias, sobra o sorriso com mais ou menos incisivos, ou a lágrima furtiva dos sentimentais; e, não duvidemos disso, a mágoa dos dias como que se ressente ou, pelo contrário, cumula-se ainda de forças insuspeitadas.
Voltamos às latas. Ao entrechoque do passado semi-mítico com o presente interesseiro das cervejeiras. A festa reforma-se mas, aparentemente, é sempre a mesma. Pelo menos, este ano a última noite será para todos os estudantes – a Direcção Geral da AAC é magnânima. Portas abertas e utópicas: o «parque» acometido por todos; liberdade, igualdade e a outra que me escapa. Um desafio de cidadania. Uma voragem das injustiças académicas.
Talvez não – afinal, a Universidade ainda é uma cidadela mais forte que o Politécnico. O passado, afinal, não se corrige. A ideia é boa mas peca pela discriminação dos estudantes dos institutos politécnicos. Engasga-se na condição que separa uns que são mais, de outros que são, sem dúvida, menos. Para o ano há mais e pior. Alguém tem que conservar o pessimismo.
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