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31.10.08

Farta disto

A garota foi-lhe às trombas. Não havia outra maneira de acabar com aquilo. Já lhe tinha acontecido outras vezes, no mesmo autocarro cheio de gente desmazelada e triste, de sovacos afastados de lavagens prudentes, com o mesmo rapaz saltitão, reguila e asselvajado, cinematográfico e rameloso. Ela via-o e já adivinhava o que iria, invariavelmente, desse por onde desse, com toda a certeza, acontecer. O rapaz gingão, bárbaro e grosseiro, teatral e circunspecto, estenderia o braço na sua direcção e, entre dois sorrisos abonados de gengivas, oferecer-lhe-ia uma rosa. Uma rosa. Nem mais, nem menos: uma pequena e frágil rosa, dita de Santa Teresinha. Desta vez foi diferente. A história levou outro caminho. A garota foi-lhe às trombas, já disse. Não havia outra maneira de acabar com aquilo. Uma rosa tem espinhos, é de lei, e aquela, por ser pequena e frágil, tinha-os mais afilados. Desta vez não ia chegar a casa com a mãozinha cheia de sangue e o coração apertado e submisso, preso naqueles sorrisos inteiros de telenovela brasileira.

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Adeus Gato Fedorento


A nova série dos Gato Fedorento, «Zé Carlos», cansa-me. A maior parte dos sketches são chatos, burocráticos e pouco originais. Ainda bem que surgiram «Os Contemporâneos»: humor inteligente, excêntrico e singular. Em constante reinvenção.

p.s. O Nuno Lopes é, como dizer isto sem ferir susceptibilidades?, genial.

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30.10.08

Passeio Público

(Das trevas para a luz)

Alguns acontecimentos recentes, dos quais não darei conta aqui, e alguma curiosidade natural, conjuraram-se para que enfim me tornasse um leitor, agradavelmente fortuito, da obra de Paulo, o apóstolo “investido” na estrada de Damasco. Uma meditação vigilante e apaziguadora, disposta na epístola aos Romanos, atenua o ardor da náusea e o sufoco insultuoso da escuridão: «A noite é passada, e o dia é chegado; dispamo-nos depois das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz.»

Não devendo aos céus nenhuma exegese atormentada, admito que as palavras de Paulo servem apenas para me situar afectivamente em relação à tão celebrada crise financeira internacional que, seguramente e para o mal, vai molhar tudo e todos. O mote é auspicioso: a estrada continua escura demais, mas, ao longe, vêem-se já as luzes de presença de algum hotel de camionistas. Para dizer a coisa em poucas palavras: isto há-de passar. A crise económica, o desemprego, o preço do gasóleo, a desigualdade social. Até porque o nosso país não é de acompanhar facilmente as tendências e as disposições «internacionais» – as boas e, valha-nos isso, também as más.

Nestas alturas lembro-me muito das campanhas eleitorais. Daquelas semanas salvíficas, assemelhadas ao paraíso, em que as grandes cabeças do país debitam as grandes ideias que vão finalmente livrar Portugal da ancestral desventura que o acomete desde os dias secessionistas no paço de Guimarães.

As promessas fazem-se aos eleitores e não aos santos. E, naquelas duas semanas, os eleitores acreditam (não há remédio) que os políticos são santos. Mais crescimento, mais emprego, mais justiça social. É certo que se recordam, ainda, da grande promessa de José Sócrates na última campanha eleitoral: cento e cinquenta mil novos empregos até ao final da legislatura. Um compromisso de execução intrincada, agora atrapalhado pela «crise económica mundial» – que, presumo, servirá de bode expiatório para tudo o que de ora em diante correr mal.

A jura de criação de empregos acompanha, também, o projecto Coimbra Inovação Parque (iParque). Apesar da conjuntura nacional de contracção no emprego qualificado, os responsáveis do iParque assumem que a criação desse tipo de emprego se dispõe como uma das matrizes essenciais do parque tecnológico.

Numa cidade que tem sido impossibilitada de crescer economicamente, muito por culpa da sobranceria autárquica (mas também do desprezo a que foi votada pelos sucessivos governos), o iParque anuncia a Coimbra uma posteridade auspiciosa – uma hipótese de regeneração e desenvolvimento. Nos dias que correm, isso não é pouco.
(Ontem, 29/10, no Jornal de Notícias)

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O dia deu fruto

No fundo a gente vive/ agora ou logo à tarde/ urdindo de memória/ a esperança violenta/ de construir a mar/ o nosso tempo.
(Paula Tavares, Ritos de passagem, pág. 62)

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29.10.08

700 anões (+15)


(Praça de Parada Leitão, Porto)

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28.10.08

Pelo alcatrão (e alguma terra) fora

(Adorigo, Douro - dias 3 e 4)
Eis a última fronteira, o momento esperado do esquecimento. A lonjura breve dos socalcos arruma a um canto o sentido mais secular da vida. Por um momento, nem que seja por um momento, entre um abraço assustadiço e as curvas efémeras da água, o mistério escolástico adensa-se insuportavelmente; na proximidade da queda os ritos moralistas da velha religião voltam a fazer sentido – o que fazer, senão rezar, quando o abismo é quase uma certeza a despedaçar o espírito?

Este é o rio. O Douro é muita coisa (e ainda mais do que isso), não se reduz às minhas vontades (boas ou más, não interessa) ou à finitude circunstancial de uma página. O Douro é mais belo antes de se cumprir entre cidades, antes de abraçar o casario cediço da Ribeira. As faldas que o dirigem ao inglório termo, enfeitadas de verde macilento e vermelho-cardeal, como velhas cachopas de bailes saltaricos, é que lhe emprestam a sumptuosidade majestática e o meneio sensual de uma cortesã decadente. O resto é paisagem, se quisermos, e não mais do que isso.

O reino maravilhoso deixou de existir? O reino talvez sim, mas não a maravilha: veja-se aquela Quinta de Santo António, alcantilada e distinta, bem fornecida de tintos encorpados (extremamente potáveis), com ritmo final de frutos vermelhos e baunilha, a fazer lembrar, por mera associação literária, a ambrósia gabada nas epopeias de Homero.

Levei comigo os livros – mas não os livros certos. Lev Tolstoi, por muito que se diga o contrário, não rima com vinho fino. Robert Walser muito menos. As montanhas do Cáucaso, que eu saiba, não produzem touriga e Khadji-Murat não era tão valente como o Alma Grande. Era preciso trespassar um Torga, da capa ao posfácio, pelo menos; esmaecer a atenção nas coisas telúricas, autóctones. Relembrei, inevitavelmente, o Jacinto na sua casa de Tormes (este nome persegue-nos), o abade de Britiande e a Brízida violada.

A vida, felizmente, é maior que os livros - e uma janela sobre o Douro é maior, ainda, que a vida.
(um) (dois)

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Leão XIII

Uma jornalista perguntou a Joe Biden: "Obama é marxista?" Velha raposa, Biden fez-se admirado: "Está a brincar?" A jornalista não estava: "Você deve reconhecer esta famosa citação 'de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades', é de Karl Marx; como é que Obama não está a ser um marxista se ele quer espalhar a riqueza pelo povo?..." De facto, Obama usara a expressão na já famosa conversa com Joe, O Canalizador, para justificar os impostos. Isso tem servido para a campanha de McCain criticar o adversário mas ninguém ainda tirara a conclusão completa, como agora a tal jornalista. Se Obama quer espalhar a riqueza não pode ser senão um marxista encapotado. A jornalista americana não chamou "Leão XIII" a Obama talvez só por caridade. Até na América, a liberdade de informação tem limites e ela não podia comparar o candidato democrata ao perigosíssimo Papa que, pouco antes de Lenine, em 1891, escreveu a encíclica Rerum Novarum e pediu, resumo, que se espalhasse a riqueza. E não falou, mas falo eu, nesse Azevedo Pereira, director-geral dos Impostos que todos os meses me suga a pretexto dos pobres.

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Ao café

Eu nem sei bem como agradecer a distinção ao mítico José Carlos Soares e, sobretudo, as palavras tão elogiosas. Um grande abraço, José Carlos.

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26.10.08

On natural bigotry

Os velhos donos juntaram-se na praça e, acocorando-se, discutiam a sua posição. Ninguém sequer falava do ódio pelos russos. O sentimento que experimentavam todos os tchetchenos, das crianças aos velhos, era mais forte do que ódio. Não era ódio, mas uma recusa em reconhecer aqueles cães como seres humanos e era tanta a aversão, a repugnância e a perplexidade perante a crueldade absurda destas criaturas que a vontade de as destruir, tal como a vontade de destruir ratazanas, aranhas venennosas e lobos, era um sentimento tão natural como o instinto de conservação.
(Lev Tolstoi, Khadji-Murat, pág. 124)

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24.10.08

Pelo alcatrão (e alguma terra) fora

(Salamanca, Dias 1 e 2)

Depois de uma espécie mal amanhada de fim do mundo, eis que a paisagem reencontra a civilização: os toiros, a faculdade de teologia e a comida de plástico. Salamanca e o Tormes. O Lazarilho segue-nos de perto - mas a sua passada é lenta e vacilante. O rumorejo do seu cajado, desfazendo o empedrado, perde-se facilmente enquanto caminhamos pelas ruas mais pardacentas da cidade.
Mais tarde, recolhendo ao hotel, julgo avistar a sua sombra abatida num dos corrimões perlados da ponte romana. O estímulo e a sugestão são tão fortes nesta parte da ibera península que todos os ecos e sombras, entrevistos na passagem das horas, podem não ser mais que uma desilusão fantasmática, uma solicitude piedosa da imaginação.

Salamanca é leonesa e castelhana mas antes disso é latina e bárbara. Latina, a ponte. Bárbara, a porca. Uma serve aqueles que querem atravessar o Tormes sem terem que molhar o cueiro, a outra não serve para nada.
(Não é bem assim: a porca favoreceu, pelo menos, uma fogosa e interminável disputa relativamente aos seus significados [histórico e etnográfico], à sua relevância alegórica e à sua comovente fealdade.)
Voltamos o lombo à ponte e, finalmente, à suína (ambas as duas de pedra): daí em frente é tudo Igreja e Coroa. Castela e Leão, pois. A Calle Mayor recolhe os nossos passos incertos, trémulos de frio, calados pela silhueta indiferente das catedrais. Os estudantes e os turistas perseguem-nos cuidadosamente, desvelados nos sorrisos e nas palavras; não deixamos nunca de os ver, são as figuras típicas dos arruamentos salamanquinos – apenas o quarto do hotel nos resguarda da sua arenga saciada. Valha-nos isso.
(A minha N’Zinga está feliz – e friorenta. A meteorologia é igual em todo o lado, dada a caprichos e insubmissões. Este amontoado de pedras parece servir apenas para mesmerizar indecentemente o frio, a nortada e a vigilância insegura dos homens.)
As peregrinações não desvendam quaisquer enigmas. Mas é um enigma que impele inicialmente o peregrino e que, no fim da jornada, o enlaça e transforma no seu descanso triunfante. As letras de ocre nas paredes dos edifícios seculares obscurecem-me o pensamento. Eis o mistério por resolver. Stencil de antiga estirpe? Não me parece. Pergunta-se. A resposta: são o estigma de um sucesso académico, a marca duradoura da glória. Uma tourada na Plaza Mayor, o sangue do touro na parede, um nome imortalizado nos olhos que perscrutam a cidade.
(um)

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Agradecimento

Ao Vítor Vicente, pelo dardo que me espetou no lombo e, sobretudo, pelo excelente trabalho que está a realizar na Editora Canto Escuro.

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23.10.08

Passeio Público

(A lata de uma festa)

Setembro acabou há muito. Outubro fina-se daqui a pouco. Os regressos a Coimbra estão consumados. Os caloiros, amansados pela tosquia pateta da praxe, vivem já na esperança do festim académico que lhes há-de dar alguma trégua. Amanhã, tudo o indica, começa a Festa das Latas e Imposição das Insígnias. A Latada, como é carinhosamente reconhecida por família e amigos.

As mudanças anunciadas para este ano não escapam a um certo ar inofensivo de arrumo cosmético. Na Queima das Fitas, com certeza que se recordam, a adulteração foi maior, mais impositiva. Nem melhor, nem pior, afinal. A festa começa com a tradicional Serenata e alonga-se, interminável, por quase uma semana.

A Latada, para além de todos os excessos que a maculam, determina simbolicamente o reinício das aulas na Universidade de Coimbra. Sempre foi assim – pelo menos desde os anos de 1950. Todos os anos se renovam os gestos fundados por outros num passado mais ou menos distante.

Todavia, o passado já não existe – é com tristeza que o digo. É um porto a que não se volta. As pessoas consomem-se na nostalgia do que foram «aqueles idos tempos», afundam-se nessa esperança inútil de que o tempo volta para trás; e, no entanto, a vida pode ser mais simples e promissora que essas comemorações melancólicas e tudo o que as pessoas deviam fazer era olhar para o que têm defronte de si, para o desafio que as espera num episódio mais à frente.

A vida é uma sucessão ininterrupta de rezas e chavões, de datas festivas ou desprezíveis, de sementeiras e colheitas – até que, um dia, tudo acaba. Perante esse desfecho forçado, sobra ao homem o asilo na solidez da repetição.

Conscientes de que o futuro, afinal, se cava na terra e depois se tapa com mármores, as pessoas não gostam de fechar o ciclo que os afasta irremediavelmente do ventre inicial, não consideram, e muito menos apreciam, uma separação de toda a ilusão retrospectiva. Após as memórias, sobra o sorriso com mais ou menos incisivos, ou a lágrima furtiva dos sentimentais; e, não duvidemos disso, a mágoa dos dias como que se ressente ou, pelo contrário, cumula-se ainda de forças insuspeitadas.

Voltamos às latas. Ao entrechoque do passado semi-mítico com o presente interesseiro das cervejeiras. A festa reforma-se mas, aparentemente, é sempre a mesma. Pelo menos, este ano a última noite será para todos os estudantes – a Direcção Geral da AAC é magnânima. Portas abertas e utópicas: o «parque» acometido por todos; liberdade, igualdade e a outra que me escapa. Um desafio de cidadania. Uma voragem das injustiças académicas.

Talvez não – afinal, a Universidade ainda é uma cidadela mais forte que o Politécnico. O passado, afinal, não se corrige. A ideia é boa mas peca pela discriminação dos estudantes dos institutos politécnicos. Engasga-se na condição que separa uns que são mais, de outros que são, sem dúvida, menos. Para o ano há mais e pior. Alguém tem que conservar o pessimismo.
(Ontem, 22/10, no Jornal de Notícias)

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Grandes portugueses

22.10.08

Italian Music #six

Buraka Som Sistema feat. Pongolove - Kalemba (Wegue Wegue)

(Sou rara tipo Welwitschia)

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20.10.08

Wegue Wegue Soundtrack

19.10.08

Comeback kid


Por fim, o regresso. Sem ideias para recomeçar, porém. Talvez um diário da jornada (a Anne Carson ajuda). Entretanto, podem espreitar o volume de Novembro da NContrast. Ide ler que está tudo muito bonito. Na página 32 encontram uma (não muito interessante) crónica de um tal Francisco Curato (sic). Mito do eterno retorno, von Sandrart e Hopper numa única página. Memorável. Imperdível. Estúpido. Como o apelido do autor. Amanhã (ou assim) há mais e pior.

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16.10.08

Esta velocidade parada

Isto não está esquecido.

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11.10.08

O pano desce lentamente

Que se há-de fazer, é preciso viver! Nós, tio Vânia, havemos de viver.
(Anton Tchékhov, O tio Vânia, pág. 108)

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9.10.08

Passeio Público

(Coração de pedra)

Ainda guardo as moradas; posso procurar as vozes desaparecidas.
Ossip Mandelstam

O vazio não devasta as cidades sem passado. Coimbra, no entanto, revela-se antiga na pátina dos anos e, sem que se pressintam os clamores doridos das pedras, despovoa-se, desarruma-se na escuridão vazia do olvido. Aquela enorme faixa entre o rio e a Universidade, sobretudo, adormece lentamente na sombra do abandono.

É triste. É doloroso, excruciante. As cidades não são apenas uma armação inerte - pedras, tijolos e betão. O seu coração é outro. A sua alma é feita de risos hílares e discussões estéreis, pálpebras sonolentas e passos irrequietos, corpos entrançados e pregões nebulosos. Em cada pessoa, uma cidade. Em cada gesto, uma memória.

As pedras persistem e raramente mudam de lugar. Os seus braços amarram-se profundamente na terra. As pessoas não. São volúveis e desentendem-se facilmente com o desconforto. Reprimem os sentimentos mais atávicos de ligação a uma cidade, a um bairro, a uma rua e, porque o dinheiro não chega para tudo, reposicionam a sua vida nos subúrbios, chegam-se a Condeixa, à Lousã e a Pereira; afastam-se da sombra tutelar da “Cabra”, da firmeza obsidiante de Santa Cruz, ou mesmo da caução tranquila dos Hospitais.

Coimbra deverá aprender a despertar novamente. A sua promessa actual é enganadora. Os preços da habitação são incomportáveis para a maioria dos jovens que pretendem iniciar uma vida longe dos cuidados fieis da parentela. Na Baixa e na Alta, são muitos os prédios que ressentem a gravidade dos anos, a atracção da ruína e o desmazelo dos proprietários.

A situação não é animadora. O que fazer, então? (É absolutamente necessário fazer alguma coisa.) As respostas são muitas - mas poucas as adequadas. Quase me sinto tentado a invocar o infame exemplo de Lisboa. Talvez a Câmara Municipal pudesse requalificar os desvalidos prédios da Baixa para depois os entregar, a preços de saldo, aos jovens (desde que fossem primos do irmão do amigo da professora de um motorista dos transportes urbanos).

Descontado o exagero, é verdade que os incentivos à habitação jovem poderiam conformar-se à norma numa cidade envelhecida (se deduzirmos aos habitantes efectivos todos os estudantes que não são naturais de Coimbra) e, em algumas áreas históricas, despojada dos gestos que denunciam a vida.

Essas zonas, principalmente o Centro Histórico, paralisam na penumbra que se distende sobre o casario acabrunhado e cediço, vazio de gente e dos vestígios que caracterizam uma existência vivida. É absolutamente necessário fazer alguma coisa (repito), não uma versão requentada da megalomania de Nero, do Barão Haussmann ou de Robert Moses, mas algo que sustente as ambições de pessoas reais. De pessoas que querem voltar à sua cidade.
(Ontem, 08/10, no Jornal de Notícias)

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5.10.08

Fui lá fora

Dir-se-ia que sim, o teu poder é esse - e tu (só tu podes confirmá-lo) não te coíbes de o usar como um déspota iluminado, irritadiço, inominável criatura sentada (de sofás de rabos pesados). No coaxar seguro das tuas palavras sobre frases inteiras de despeito unes a luz às trevas, cospes os pêlos dos gatos assanhados, encaminhas os nossos passos pelos corações em ruínas. Oh, como és assisado nas tuas decisões precipitadas.
Fui lá fora, o teu poder é esse - e não voltarei a entrar.

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O (pouco) que nos separa

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2.10.08

Passeio Público

(Respirar [debaixo d’água])

Porque é que Coimbra pode ser a capital regional da água? Pergunta embaraçosa, por certo, mas que não está para além de todas as conjecturas. Se fugirmos da especulação podemos responder com as palavras de Nélson Geada, administrador executivo da empresa multimunicipal Águas do Mondego: sim, porque a cidade tem “água em quantidade e com qualidade”.

Um ou dois dias depois da entrevista à Rádio Regional do Centro, as palavras de Geada degelavam nas aturdidas águas de um tanque improvisado junto a Santa Cruz. Culpa da chuva. Cai sobre o chão depressa demais, em coléricas quantidades e sem que ninguém a convoque. No entanto, devíamos contar com ela. O Verão não cativou os resplendores do sol e não há razões para acreditar que o Outono ou o Inverno ultrapassem incólumes as (des)graças da meteorologia.

Um Domingo qualquer. Como se fosse um sinal adiado até ao limite do possível, a profanação inquieta das águas sobre os degraus da Igreja de Santa Cruz comprovou a prosaica arbitrariedade da natureza. Uma hora (talvez um pouco menos) de aguaceiros consubstanciou as fragilidades no escoamento de água de uma cidade que convive estreitamente com o rio.

Os prejuízos foram menos graves que nas inundações de 2006, e menos ainda que em 2001. No entanto, é clara a advertência da história: Coimbra não está preparada para “apaziguar” a impetuosidade eversiva e devastadora das chuvadas torrenciais – que, como sabemos, não são assim tão invulgares e exóticas. Sempre que a procela é repentina, a Praça 8 de Maio, por exemplo, fica inundada devido à inexistência de saídas de água suficientes para escoar o caudal produzido.

Carlos Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Coimbra (incumbido, também, da gestão do pelouro da Protecção Civil), lamenta o sucedido mas, irmanado a Pilatos, alivia as suas mãos de culpas e responsabilidades ao admitir desanimadamente a inevitabilidade da situação.

É, porém, evidente que Encarnação não acredita piamente nesse fatalismo relevado da meteorologia. Nesse sentido, o presidente da Câmara pondera que o escoamento das águas poderá ser facilitado pelo desassoreamento do rio Mondego. A construção de uma conduta entre a Praça 8 de Maio e o Rio Mondego poderá contribuir para a resolução do problema. Enfim, que não se despreze, também, a manutenção de esgotos, grelhas ou valetas. As chuvadas explicitam a negligência furtiva: as sarjetas entulham-se, o lixo conjura-se nos pontos de escoamento, a água subjuga a cidade.

A água não guarda segredos. O homem nasceu nela e devia conhecê-la bem – devia saber que ela não se compadece com o desleixo nem se comove com a fraqueza de quem se senta à espera de um qualquer destino irrevogável.
(Ontem, 01/10, no Jornal de Notícias)

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1.10.08

Turner


Há uns anos vi um «céu de Turner» na National Gallery em Londres - talvez na tela de Sun rising through vapour: fishermen cleaning and selling fish. Depois disso, vi mais alguns: em Coimbra, junto ao Mondego, ou nas arribas de Santorini. Mas nunca nenhum tão belo como este, olhado de Algés (clicar sobre a imagem para ver maior). Os olhos mal dormidos, a nudez inocente da manhã, uma mão afeiçoada sobre a minha - um dia a começar naquele céu.

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A nossa vez

Encontramos um dos melhores cronistas portugueses da actualidade no caderno P2 do Público: Paulo Varela Gomes. Os seus textos conduzem-nos através de uma Índia ignorada pelos media, revelam a imensidão de um país que, afinal, ninguém conhece. Pelo menos por cá.

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