Pelo alcatrão (e alguma terra) fora
(Adorigo, Douro - dias 3 e 4)
Eis a última fronteira, o momento esperado do esquecimento. A lonjura breve dos socalcos arruma a um canto o sentido mais secular da vida. Por um momento, nem que seja por um momento, entre um abraço assustadiço e as curvas efémeras da água, o mistério escolástico adensa-se insuportavelmente; na proximidade da queda os ritos moralistas da velha religião voltam a fazer sentido – o que fazer, senão rezar, quando o abismo é quase uma certeza a despedaçar o espírito?
Este é o rio. O Douro é muita coisa (e ainda mais do que isso), não se reduz às minhas vontades (boas ou más, não interessa) ou à finitude circunstancial de uma página. O Douro é mais belo antes de se cumprir entre cidades, antes de abraçar o casario cediço da Ribeira. As faldas que o dirigem ao inglório termo, enfeitadas de verde macilento e vermelho-cardeal, como velhas cachopas de bailes saltaricos, é que lhe emprestam a sumptuosidade majestática e o meneio sensual de uma cortesã decadente. O resto é paisagem, se quisermos, e não mais do que isso.
O reino maravilhoso deixou de existir? O reino talvez sim, mas não a maravilha: veja-se aquela Quinta de Santo António, alcantilada e distinta, bem fornecida de tintos encorpados (extremamente potáveis), com ritmo final de frutos vermelhos e baunilha, a fazer lembrar, por mera associação literária, a ambrósia gabada nas epopeias de Homero.
O reino maravilhoso deixou de existir? O reino talvez sim, mas não a maravilha: veja-se aquela Quinta de Santo António, alcantilada e distinta, bem fornecida de tintos encorpados (extremamente potáveis), com ritmo final de frutos vermelhos e baunilha, a fazer lembrar, por mera associação literária, a ambrósia gabada nas epopeias de Homero.
Levei comigo os livros – mas não os livros certos. Lev Tolstoi, por muito que se diga o contrário, não rima com vinho fino. Robert Walser muito menos. As montanhas do Cáucaso, que eu saiba, não produzem touriga e Khadji-Murat não era tão valente como o Alma Grande. Era preciso trespassar um Torga, da capa ao posfácio, pelo menos; esmaecer a atenção nas coisas telúricas, autóctones. Relembrei, inevitavelmente, o Jacinto na sua casa de Tormes (este nome persegue-nos), o abade de Britiande e a Brízida violada.
A vida, felizmente, é maior que os livros - e uma janela sobre o Douro é maior, ainda, que a vida.
Etiquetas: devaneios
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