30.6.04
Amor 2
Existem milhões de maneiras de mostrar a uma mulher [ou homem] o amor que sentimos por ela. Nem todas reflectem, necessariamente, a verdade.
29.6.04
Simulacro
As parcas memórias de exterioridade acorrem a esta cela pequena e suja, agora que falta tão pouco para que eu pague a última prestação do que devo ao mundo. Três semanas, apenas. Um acto não vale a vida inteira de um homem, li num conto de Borges, mas quando matei aquele homem para o roubar, quando tirei uma vida para tentar salvar outras três – um filho, uma esposa, eu, famintos – o acto deliu qualquer réstia de esperança numa vida que acabou ali. Mas que digo? Eu continuo por aqui, e aquele homem não passa de um estranho aglomerado de ossos, coberto por seis palmos de boa terra portuguesa. Ou serão sete? Divago como Raskolnikov, meu irmão assassino. Nem isso. Eu sou uma fantasia que fantasia um irmão assassino, também ele uma fantasia de outro. Mas a vida é isso, um simulacro de simulacros. E não sou eu que vou colocar isso em causa.
Etiquetas: Borges, devaneios, dostoievsky
28.6.04
Hagiografia alternativa
A Igreja Católica assumiu sincrética e prodigamente, com conformação de santos, os mitos e as divindades que, antes do seu domínio espiritual em larga fatia da terra emersa, se revezavam pelas quatro partidas do mundo. Por isso toda a terrinha deste país amante de bandeiras colocadas à janela exibe orgulhosamente o seu santinho, orago, padroeiro e amigo, derradeira e sagrada instância quando é a pele que está em jogo. Apesar de larga [veja-se a cifra monumental de santos e santas desembargados por João Paulo II], a malha que o homem ou mulher que quer atingir o estatuto sagrado tem de permear existe; ao contrário do que sugere esta prazenteira efabulação ocorrida num estabelecimento de ensino superior português:
- Dê-me um exemplo de um mito religioso – diz o professor.
- Um mito religioso? Sancho Pança! – responde o aluno, meditabundo.
Estupefacto, o professor pede ao aluno para este escrever o que acabou de proferir.
O aluno escreve no papel: "S. Xupanssa".
Talvez o processo para a beatificação deste filho de Cervantes já esteja nas mãos do Cardeal Ratzinger…
- Dê-me um exemplo de um mito religioso – diz o professor.
- Um mito religioso? Sancho Pança! – responde o aluno, meditabundo.
Estupefacto, o professor pede ao aluno para este escrever o que acabou de proferir.
O aluno escreve no papel: "S. Xupanssa".
Talvez o processo para a beatificação deste filho de Cervantes já esteja nas mãos do Cardeal Ratzinger…
27.6.04
8:45 am, Coimbra B
Quis dar-lhe um último beijo antes de saltar para o comboio que, ainda não o sabia, os afastaria para sempre. Ela pegou-lhe suavemente na mão e apagou-lhe o sorriso enquanto confidenciava: “Ainda bem que vais para tão longe. Já não te amo. Vai ser melhor assim. Acabarás por esquecer-me.”
Se ela não tivesse mentido, ainda não sei se por piedade ou por um assomo de crueldade própria dos abandonados, ele teria saltado para o comboio e não para a frente do comboio. Mesmo afogueado de longe, os rostos distantes contemplando-se mutuamente em fotografias amarelecidas, o amor poderia não morrer. Mas assim, subitamente perecido, desse amor restaram somente pedaços espalhados por vários quilómetros e uma culpa perene por expiar.
Se ela não tivesse mentido, ainda não sei se por piedade ou por um assomo de crueldade própria dos abandonados, ele teria saltado para o comboio e não para a frente do comboio. Mesmo afogueado de longe, os rostos distantes contemplando-se mutuamente em fotografias amarelecidas, o amor poderia não morrer. Mas assim, subitamente perecido, desse amor restaram somente pedaços espalhados por vários quilómetros e uma culpa perene por expiar.
25.6.04
Send them home
“As minhas armas são humanas mas o combate que quero travar é louco”, disse Ahab, justificando o íntimo desígnio que o impelia a buscar a redenção no insano recontro com Moby Dick, o leviatã branco. E o Ricardo, sem luvas, impelido por Eusébio e por 10 milhões de crentes, cerrou os punhos e mandou os bifes para casa. Com a ajuda daqueles magníficos rapazes que correram só para que nós ficássemos felizes. Thank you boys!
23.6.04
S. João no Porto [mais propriamente nos Carvalhos, Gaia]
Daqui a pouco, o colorido das fitas e dos balões surgirá finalmente como que por magia, enleado nos arbustos do jardim e nas saliências da parede, abraçando calorosamente os que acorrem de longe, da urbe estudantil junto ao Mondego, à festa maior do solstício. Alinham-se as sardinhas e os pimentos, verdes e vermelhos, as febras e a entremeada, na imaculada banca harmonizada com o velho grelhador [o saco de carvão transbordante de negro namora-o ainda, antes de se acenderem os primeiros lumes]. A aparelhagem ainda não foi aparelhada com a música apropriada “O Santo António já se acabou…”, e os risos ainda não cortam o ruído da festa mas a emoção já aflora nos rostos que começam por cortar as maçãs para a tarte, por resguardar as cervejas e a sangria no frio do congelador, por buscar na arrumação o martelinho pacificador. Daqui a pouco, a festa.
22.6.04
T.H. Huxley em versão "blogger"
Charles Darwin, quando escreveu "On the origins of the species...", nunca pensou que um dos seus prosélitos, T.H. Huxley [avô do eminente biólogo evolucionista Julian Huxley e do romancista Aldous Huxley, esse, o do "Admirável Mundo novo"], fosse ainda mais darwinista que ele próprio e que pleiteasse com tanto fervor a revolucionária teoria da evolução que até conquistou a posterioridade com o cognome de "bulldog de Darwin". O Bruno, para mim, é o Thomas Henry Huxley da blogoesfera: o campeão defensor do José Mourinho e da Laetitia Casta, o advogado das causas justas e o popularizador de um certo ideal erótico da antropologia. E, sobretudo, é um grande amigo que hoje comemora, com todos nós, os trezentos e sessenta e cinco dias do seu filhote - o magnífico Avatares de um Desejo.
Os necrófagos
Quando as sombras frias me tocam, sinto que o sonho se aproxima vacilante. As mesmas sombras que pairam no exterior da arena poeirenta, aquém da luta, aguardando o agonizar de um dos guerreiros, desejando um erro que o atire definitivamente ao solo para, descansadamente, lhe esburgarem impudicamente os ossos cobertos de carniça. A morte e a desgraça são as nefandas companhias dos abutres e das hienas, as provedoras desses cobardes animais. Os necrófagos são menos piedosos que os predadores propriamente ditos, estes proporcionam uma luta leal ao animal que caçam. Não esperam que ele oscile em desacerto, que a morte o recolha e o abandone à impiedade desleal.
Há quem chore quando os abutres e as hienas esperam o animal que perde, traído pela morte, e sem piedade o desfazem.
p.s. Sem este post scriptum este texto seria talvez demasiado hermético e mal alinhavado para que pudesse ser compreendido. Eu acrescento uma direcção de entendimento: não esperemos, satisfeitos, uma falha do Ricardo, o guarda-redes da selecção, de forma a podermos pronunciar sadicamente “Eu estava certo”. Ninguém se sente feliz com a queda dos outros. Só os abutres e as hienas.
Há quem chore quando os abutres e as hienas esperam o animal que perde, traído pela morte, e sem piedade o desfazem.
p.s. Sem este post scriptum este texto seria talvez demasiado hermético e mal alinhavado para que pudesse ser compreendido. Eu acrescento uma direcção de entendimento: não esperemos, satisfeitos, uma falha do Ricardo, o guarda-redes da selecção, de forma a podermos pronunciar sadicamente “Eu estava certo”. Ninguém se sente feliz com a queda dos outros. Só os abutres e as hienas.
21.6.04
L'amour
O que mais chateia na disseminação banal do sexo e do beijo, mesmo da oferta de uma flor, é a consciência de que não mais existe um gesto exclusivo do amor. Estamos condenados à conjunção de um inumerável de gestos, de sinais, de sussurros – para vibrarmos completamente com o jogo do amor. Até ver, o melhor que existe.
19.6.04
A matança do porco
A minha avó acordou-me cedo, muito mais cedo que o normal em dia de escola. Eu devia ter uns 12 anos enfezados, o meu corpo não fora ainda assaltado pelas minudências da puberdade – os primeiros pêlos, uma ou outra espinha, a voz engrossada e o growth spurt na estatura. Mas ia iniciar-me num admirável mundo novo, a vivência dos adultos: encorpada numa matança de um animal de quem eu, por principio, não gostava – nojento, fuçando no estrume, estilando pestilentos odores, cujo nome próprio denuncia a sua javarda natureza.
O protocolo da matança é banal. O porco, ou porca, é deitado de costas numa mesa larga com meio metro de altura. As quatro patas do suíno são obstinadamente fixas às mãos nodosas dos homens enquanto o matador, com enorme sabre afiado, espeta o animal na jugular, de onde se evade o gorgolejante vermelho do sangue para um alguidar seguro pelas mulheres. Cheguei junto dos homens, o meu avô, o meu pai, o meu tio, o Tónio, o Zé Línguas e o matador João Seiça, protestando que não queria ficar ali a ouvir os guinchos terríveis que proclamavam a derrota do porco e através dos quais o animal certamente amaldiçoava aqueles duas pernas que o iam preparar mais tarde nas brasas.
“Não tenhas medo”, disse o meu avô, “agarras o porco na pata de trás comigo. É só para te ires habituando”. “Eu não tenho medo”, zanguei-me, “não gosto é de ouvir o choro do porco”. O Zé Seiça, enquanto afiava a faca, ia contando que assim que chegou aos matos de Angola andou a juntar os pedaços de dois companheiros que tinham pisado uma anti-pessoal nos próprios alforges dos dois coitados. “Uma bela história para encantar criancinhas”, pensei eu, néscio de todo. Lá nos abraçámos ao bicho que, depois de mortalmente ferido, vozeou ainda mais pragas e anátemas [não é assim tão difícil imaginar um porco taumaturgo, afinal eu olhei para o seu interior e pude comprovar que a melhor maneira de conhecer um homem é olhando para o corpo de um suíno] durante uns bons 20 minutos. Os primeiros sangues, rebeldes, vieram encalhar-se na minha face imberbe, apavorada, misturando-se com as lágrimas que, desse modo, ficaram escondidas pelo motivo que as provocou. No meio da confusão, o Tónio ainda teve o desplante de perguntar ao Zé Línguas algo pavoroso, violento: “Queres trocar a tua mulher pela minha?”; “Ora essa, merda por merda não vale a pena”, respondeu este, zombeteiro. Agarrado ao meu avô e à perna do animal trespassado, pensei: “Que porcos!”
O protocolo da matança é banal. O porco, ou porca, é deitado de costas numa mesa larga com meio metro de altura. As quatro patas do suíno são obstinadamente fixas às mãos nodosas dos homens enquanto o matador, com enorme sabre afiado, espeta o animal na jugular, de onde se evade o gorgolejante vermelho do sangue para um alguidar seguro pelas mulheres. Cheguei junto dos homens, o meu avô, o meu pai, o meu tio, o Tónio, o Zé Línguas e o matador João Seiça, protestando que não queria ficar ali a ouvir os guinchos terríveis que proclamavam a derrota do porco e através dos quais o animal certamente amaldiçoava aqueles duas pernas que o iam preparar mais tarde nas brasas.
“Não tenhas medo”, disse o meu avô, “agarras o porco na pata de trás comigo. É só para te ires habituando”. “Eu não tenho medo”, zanguei-me, “não gosto é de ouvir o choro do porco”. O Zé Seiça, enquanto afiava a faca, ia contando que assim que chegou aos matos de Angola andou a juntar os pedaços de dois companheiros que tinham pisado uma anti-pessoal nos próprios alforges dos dois coitados. “Uma bela história para encantar criancinhas”, pensei eu, néscio de todo. Lá nos abraçámos ao bicho que, depois de mortalmente ferido, vozeou ainda mais pragas e anátemas [não é assim tão difícil imaginar um porco taumaturgo, afinal eu olhei para o seu interior e pude comprovar que a melhor maneira de conhecer um homem é olhando para o corpo de um suíno] durante uns bons 20 minutos. Os primeiros sangues, rebeldes, vieram encalhar-se na minha face imberbe, apavorada, misturando-se com as lágrimas que, desse modo, ficaram escondidas pelo motivo que as provocou. No meio da confusão, o Tónio ainda teve o desplante de perguntar ao Zé Línguas algo pavoroso, violento: “Queres trocar a tua mulher pela minha?”; “Ora essa, merda por merda não vale a pena”, respondeu este, zombeteiro. Agarrado ao meu avô e à perna do animal trespassado, pensei: “Que porcos!”
18.6.04
Anedotário
O italiano Francesco Totti, para além do talento que destila a rodos no meio campo avançado da Roma e da Squadra Azurra e da enorme pontaria que revelou no intrincado desporto que consiste em acertar com cuspo num adversário dinamarquês, é também escritor, ainda por cima humorístico, na senda daquele mal-educado entertainer de Rio Tinto mas sem a palavrosa verborreia nortenha. O jogador é pródigo em gaffes pelo que a editora Mondadori resolveu explorar esse enorme filão em forma de livro – “Tutti le barzellette su Totti”- que, mal traduzido, quer dizer “Todas as piadas de Totti”. Um exemplo: Totti abre um livro e lê “Sumário”, respondendo mentalmente “Sou Francesco, muito prazer”. O êxito do anedotário de Totti [600 mil cópias vendidas! Qual Saramago, qual quê!] tem um destinatário integral: a UNICEF. A receita vai inteirinha para este organismo e… isto não é nenhuma piada. É indício de um bom coração.
17.6.04
O dia do jogo
Acordo. O quarto do hotel de cinco estrelas, vagamente iluminado, continua a ser um estranho que ainda não consigo suportar, apesar da limpeza imaculada, do luxo dos móveis e das flores que todos os dias são renovadas e depostas numa pequena jarra vitoriana sobre a mesinha de cabeceira. O pequeno-almoço, tomo-o em silêncio, expectante, condicionado pelo porvir de um dia que, para a glória ou para a lama, me arrastará impiedosamente. Os outros não disfarçam o nervosismo, o tique-taque dos dedos nas mesas denunciando ambições trazidas de longe, talvez da infância, medos sufocados pela necessidade de uma aparência exterior tributária a John Wayne, pum-pum, eu não tenho medo de ninguém e mato quem se atravessar à minha frente.
O autocarro é engolido pela turba amante, os cachecóis beijam-nos atrvés dos vidros, a sudação nervosa não respeita o ar-condicionado. No interior do estádio é a final. Sessenta e cinco mil pessoas perfilam-se nas cadeiras ansiosas pelo passe que irá sobrevoar a defesa e libertar o avançado, pelo drible imprevísivel, pelo golo fora da área. Ouvi em registo difuso a minha inclusão nos que vão iniciar a partida. Nos jornais do dia anterior clamam por Hércules, o semi-deus, clamam pelo meu passe, pelo meu drible, pelo meu golo. O público, em uníssono, gesticulante, grita: Francisco, Francisco, Francisco.
Acordo. Um olhar relanceante para a mesinha de cabeceira desencadeia um suspiro de alívio – livros, algumas cartas, um relógio, um telemóvel e uma fotografia substituem as flores e a desarrumação é atípica de um hotel. É o meu quarto. Foi só um pesadelo.
O autocarro é engolido pela turba amante, os cachecóis beijam-nos atrvés dos vidros, a sudação nervosa não respeita o ar-condicionado. No interior do estádio é a final. Sessenta e cinco mil pessoas perfilam-se nas cadeiras ansiosas pelo passe que irá sobrevoar a defesa e libertar o avançado, pelo drible imprevísivel, pelo golo fora da área. Ouvi em registo difuso a minha inclusão nos que vão iniciar a partida. Nos jornais do dia anterior clamam por Hércules, o semi-deus, clamam pelo meu passe, pelo meu drible, pelo meu golo. O público, em uníssono, gesticulante, grita: Francisco, Francisco, Francisco.
Acordo. Um olhar relanceante para a mesinha de cabeceira desencadeia um suspiro de alívio – livros, algumas cartas, um relógio, um telemóvel e uma fotografia substituem as flores e a desarrumação é atípica de um hotel. É o meu quarto. Foi só um pesadelo.
16.6.04
Procuram-se
São altos, corte de cabelo à magala, um pouco anafados, parecidos com um pit bull mas talvez mais feios. A sua mão direita, quando farta de perfazer a saudação fascista, afaga não poucas vezes um recipiente verde contendo um líquido alcoólico borbulhoso.
Não, não faço uma descrição dos adeptos ingleses. Não vamos cair na tentação etnocentrica de os catalogar como uma resma indiferenciada de alarves. Alguns até são porreiros. Quanto aos outros, iguais aos da foto, mantenhamo-nos afastados.
Não, não faço uma descrição dos adeptos ingleses. Não vamos cair na tentação etnocentrica de os catalogar como uma resma indiferenciada de alarves. Alguns até são porreiros. Quanto aos outros, iguais aos da foto, mantenhamo-nos afastados.
Please, please, please me
Seu Scolari, eu sei que o sôr não lê blogues, se calhar o sôr só lê a Bola e o Correio Mirim de Alagoas, mas se por acaso tropeçar por aqui fixe a cara destes dois e ouça o meu pedido, ouça a prece de 10 milhões de almas que quase se perdem: meta-os, aos dois, lá para dentro. Desde o início do futejogo e com o fóssil Costa incrustado na estratigrafia do banco.
15.6.04
Estaleiro
Embora de momento o seja somente em teoria, o escriba do Daedalus tornou-se o mais novo operário a tempo parcial do Estaleiro, blog que versa "sobre a canhota aplicabilidade da boa e velha democracia a Portugal. Entre outras coisas".
O Daedalus não é um espaço politicamente comprometido. Mas é um espaço de liberdade e, por isso, politicamente comprometido. Confusos? Eu também.
O Daedalus não é um espaço politicamente comprometido. Mas é um espaço de liberdade e, por isso, politicamente comprometido. Confusos? Eu também.
Pequenino
Momentos antes de rasgar a camisola de Rui Jorge...
Num texto anterior disse, de forma inequívoca, que José Mourinho é o maior. Falava, claro, das suas superiores capacidades enquanto treinador de futebol, um simples jogo que move multidões. Mas se Mourinho é grande como profissional do treino e condução de homens, enquanto homem Mourinho parece ser pequenino. E mais não digo.
14.6.04
La Fura dels Baus
A controversa e provocativa companhia teatral catalã La Fura dels Baus regressa ao rectângulo português, desta vez a bordo do "Naumon", um velho navio de mercadorias. Aportam hoje em Lisboa onde permanecerão ancorados até dia 20, dia em que rumam à Figueira da Foz [tão pertinho de Coimbra]. O espectáculo desenvolve-se no interior do barco e também na zona do porto. O grupo pretende "jogar" [perdoem-me, é culpa do Euro 2004] ao velho estilo "furero": provocador, manipulador e rebelde. Para a criação deste projecto, os Fura encetaram uma cooperação, esperemos que frutuosa, com o escritor e filósofo catalão Rafael Argullol.
Preço dos Bilhetes: 35€ [o espectáculo será grandioso mas não deixa de ser uma chulice, in my modest opinion]
13.6.04
Dever cívico?
Como são aborrecidos
Os políticos que temos
Quando abrem a caça ao voto
Só nos prometem aquilo que não queremos
Não posso esquecer
Que sou um bom cidadão
Estou rodeado de amigos
Todos me querem dar a mão
Por isso eu vou votar
Domingo vou escolher alguém
Mas estou muito indeciso
Todos querem o meu bem
Refrão:
Vota, vota,
sê um bom compatriota
Portugal não pode parar
Vai votar, vai já votar
São todos tão diferentes
Usam métodos iguais
Gastam milhões em propaganda
Por interesses pessoais
[Peste e Sida, Dever cívico?, Peste e Sida é que é!, 1990]
Vamos lá votar, então.
Os políticos que temos
Quando abrem a caça ao voto
Só nos prometem aquilo que não queremos
Não posso esquecer
Que sou um bom cidadão
Estou rodeado de amigos
Todos me querem dar a mão
Por isso eu vou votar
Domingo vou escolher alguém
Mas estou muito indeciso
Todos querem o meu bem
Refrão:
Vota, vota,
sê um bom compatriota
Portugal não pode parar
Vai votar, vai já votar
São todos tão diferentes
Usam métodos iguais
Gastam milhões em propaganda
Por interesses pessoais
[Peste e Sida, Dever cívico?, Peste e Sida é que é!, 1990]
Vamos lá votar, então.
12.6.04
Portugal 1 : Grécia 2
Desta vez nem podem os arautos da desgraça assacar as culpas de mais uma derrota e péssima exibição da selecção portuguesa ao guarda-redes Ricardo, bode expiatório da preferência de tantos críticos da bola. Nem eu vou conceder a responsabilidade do resultado e exibição paupérrimos ao erro infantil do Paulo Ferreira, logo nos primórdios do jogo. Isso seria demasiado fácil. Seria alinhar com a atitude mental de alguns que, na sua torre de marfim, julgam os outros com olhos vendados para si próprios. Cortando em frente, se Scolari não tresandar a burro [eu julgo que não], arruma o Rui Costa e o Simão no banco [sobretudo o primeiro, merece-o] e joga com uma equipa mais ou menos a sério. Essa, a dos últimos 15 minutos de jogo.
De volta
O sono atacou cedo, talvez não tão cedo como agora tento recordar, logo após o jantar solitário nas escadas da sala. Insinuando-se às claras, mostrando-se sem medo ao homem que se ia pondo pequenino à medida que acolhia lentamente aquele desmando de Morpheu, conduziu-o célere para uma cama larga, própria para um casal, e abraçou-o daquela maneira universal e inconfundível que é a maneira como a mãe abraça o filho pequenino. O sonho acudiu também, com pressa, a tropel na noite, subjugando ainda o homem cada vez mais sumido. E trouxe-te a ti de volta.
9.6.04
Suspensão leve
Os últimos textos que vão desfilando aqui não são mais que lixo literário que, por falta de tempo, me vejo obrigado a revelar aos melhores leitores do mundo, vocês. Também não me tenho demorado nos topos blogoesféricos onde me sinto melhor. Desse modo, e como rumarei hoje, por motivos profissionais, a ignoto local meridiano farei uma pequena pausa no Daedalus. No Sábado, depois da bola, alentado pela quietação do interregno, voltarei novamente para junto de vós.
Slow food de forma rápida 5
Foi durante o jantar de ontem, alguns amigos conluiados à mesa, que o Ricardo me trespassou o segredo culinário: uma espécie de frango paki. O proémio é trivial, refogado de azeite, cebola e alho. A que se adiciona frango [cirurgicamente decomposto] criado pela avó, para fritar um pouco. Depois, um raminho de salsa, sal e vinho branco. Permite-se uma boa fervedura. Quando o pito estiver bem aferventado bota-se para o tacho uma farta colher de sopa de caril e côco. O acompanhamento certo: um arroz paquistanês [acho que se diz basmati] e uns comensais de palato burilado. Estes pratos, meio pesadotes, descem bem com uma Mini Sagres. Eu sei que recomendo sempre a mesma cerveja [se calhar é porque gosto mesmo dela] mas se quiserem ter outras opções leiam as dicas do Francisco José Viegas na Grande Reportagem.
Etiquetas: gastronomia
António Sousa Franco [1942-2004]
E assim, trágica e inusitadamente, perdeu o país o seu melhor candidato ao Parlamento europeu.
Não há palavras que aligeirem a morte de alguém.
8.6.04
O espelho do homem – mais uma acha para a fogueira [texto grande mas que talvez valha a pena ler]
Os chimpanzés da floresta de Täi [Costa do Marfim] alimentam-se tipicamente em parties [subgrupos que deambulam independentemente num território comum em busca de alimento] flutuantes compostas por 7 a 12 indivíduos, permanecendo continuamente em contacto auditivo com a maioria da comunidade [cerca de 80 indivíduos]. Comummente, a comunidade divide-se em três grandes parties que podem comunicar entre si através de vocalizações ou de batidas. As árvores caídas são abundantes na floresta de Täi e os machos adultos percutem os troncos caídos com as mãos ou pés, poderosa e rapidamente, um comportamento designado “batida” [drumming].
A batida é uma forma de os machos comunicarem a sua posição a outros membros do grupo, informando-os da direcção de progressão do drummer. As sequências de percussão carregam três tipos de mensagem: alteração na direcção de viagem, proposta de período de descanso e simultaneidade de ambos os comportamentos anteriores, isto é, mudança de direcção após um período de descanso.
A definição do termo símbolo incorpora três asserções fundamentais: primeira, uma dissociação explícita entre o referente e o sinal que se refere a ele; segunda, a generalização do uso do sinal na ausência do referente [o displacement de Hoecht] e, terceira, a valoração comunicativa do sinal, que deverá informar acerca do comportamento subsequente do emissor e que, concomitantemente, poderá alterar o comportamento do receptor.
O sistema de comunicação dos chimpanzés de Täi faculta a troca de informação entre os membros do grupo, ou seja, é um sistema partilhado e que encerra um valor comunicativo. O sistema é arbitrário na medida em que a sequência de batidas não possui uma conexão directa com a noção de direcção ou de tempo. Todavia, não é totalmente arbitrário, mas sim icónico, já que o movimento efectuado pelo emissor entre as sequências relaciona-se directamente com a informação transmitida.
A manutenção deste sistema requer a sua compreensão pelos outros membros do grupo. De facto, os receptores encontram-se muitas vezes fora de contacto visual com o emissor e, desse modo, necessitam de visualizá-lo mentalmente e inferir o seu movimento subsequente a partir das suas batidas sequenciais.
As observações incidindo nos chimpanzés de Täi sugerem que condições ecológicas e sócio-psicológicas alicerçam a evolução da comunicação simbólica. Os chimpanzés em estado selvagem, vivendo em grandes grupos multi-macho, carecem de um compromisso entre a necessidade de dispersão para procurar alimentos e a necessidade de manter um contacto próximo, de forma a ressoarem uma réplica eficiente à súbita aparição de predadores ou grupos rivais. Este conflito de interesses numa floresta onde a visibilidade é escassa forçou-os a adoptar um sistema de comunicação acústica. Ou seja, sob o efeito combinado de visibilidade parca e elevada pressão predatória, os chimpanzés de Täi podem ter sido “forçados” a adoptar um sofisticado sistema de comunicação acústica que coordena os movimentos do grupo e que mantém a sua coesão.
7.6.04
Conversa da treta (última, graças a Deus)
-Este amontoado de ossos significa que esta gente morreu na guerra.
-[…]?
-Pois, foi o Hitler que os mandou matar e enterrar aqui.
-[…]?
-Pois, foi o Hitler que os mandou matar e enterrar aqui.
Uma manhã qualquer
Esta manhã que te sirvo numa bandeja, acompanhada de dois croissants e leite morno, sem café, talvez seja como o amor que te dedico. Diáfana, ardente, viva. Eterna até ao meio-dia.
6.6.04
Conversa da treta 2
-Então quantos anos têm estes ossos?
-Cerca de 200.
-Ena, são muito antigos. Devem ser mouros…
-Cerca de 200.
-Ena, são muito antigos. Devem ser mouros…
5.6.04
A noite: Junho
A noite é a mesma, lá fora. No charco, do outro lado da linha-férrea, as rãs, as mesmas que lavaram os pés a Nosso Senhor e que auxiliaram Sir Paul Mcartney a ter um sucesso a solo, entretêm-se a cantar ao desafio, secundadas pelo chapinhar lépido de uma cegonha [aqui é o escriba a presumir] nas pausadas águas do arrozal. Um rouxinol, um pouco mais atrás, no silvado, ajusta a voz aflautada e conduz a orquestra inusitada ao triunfo. A plateia, eu, aplaude de pé a sublime sinfonia. A noite é a mesma, perfeita. Talvez falte uma espreguiçadeira na varanda.
4.6.04
A casa
O Fernando contou esta história ao meu pai, que ma contou a mim, que a conto a vocês.
O Fernando nunca foi homem de letras ou números, a única coisa que aprendeu na escola foi que as mãos enrijam quando são solicitadas constantemente, à custa das palmatoadas que a Dona Maria Luísa, a professora, lhe dispensava com prodigalidade. Sabedoria proveitosa se pensarmos que a profissão que abraçou – pedreiro – é mester liberal em matérias de endurecer e calejar mãos. Pois contou o Fernando ao meu pai que se apaixonou por uma casa que construiu há uns anos, em localidade ignota [Casal Mioto], e que desde então lhe aparece, em sonhos, todas as noites que não bebe mais que a costumada conta. Diga-se, honrando a verdade, que não são muitas. Que uma pessoa se apaixone por uma casa já é estranho per se, mas que não denuncie razão válida para tal acometimento ainda mais estranho me parece. Questionado acerca dos fundamentos que o levaram a enamorar-se de uma casa, o Fernando respondia, invariante: -Aquela casa tinha trinta e duas janelas. De uma não se via a outra. Termino a história sem saber muito bem porque decidi contá-la, talvez para me convencer que o amor tem razões que a própria razão desconhece.
O Fernando nunca foi homem de letras ou números, a única coisa que aprendeu na escola foi que as mãos enrijam quando são solicitadas constantemente, à custa das palmatoadas que a Dona Maria Luísa, a professora, lhe dispensava com prodigalidade. Sabedoria proveitosa se pensarmos que a profissão que abraçou – pedreiro – é mester liberal em matérias de endurecer e calejar mãos. Pois contou o Fernando ao meu pai que se apaixonou por uma casa que construiu há uns anos, em localidade ignota [Casal Mioto], e que desde então lhe aparece, em sonhos, todas as noites que não bebe mais que a costumada conta. Diga-se, honrando a verdade, que não são muitas. Que uma pessoa se apaixone por uma casa já é estranho per se, mas que não denuncie razão válida para tal acometimento ainda mais estranho me parece. Questionado acerca dos fundamentos que o levaram a enamorar-se de uma casa, o Fernando respondia, invariante: -Aquela casa tinha trinta e duas janelas. De uma não se via a outra. Termino a história sem saber muito bem porque decidi contá-la, talvez para me convencer que o amor tem razões que a própria razão desconhece.
3.6.04
Distância
O amor promete uma semana inteira sem te ver. O Platão que se lixe. A alegria do reencontro, todas as semanas no fim da semana, não vale cada momento que deixo de estar contigo. Quero estar contigo sempre. Mesmo quando não é possível, vem dormir comigo. Prometo que mudo os lençóis da cama e aspiro o pó do quarto. E pago uma noite no hotel aos meus pais.
1.6.04
Reflexões em torno de um ossário
Nestes últimos dias tenho observado com interesse, maior que o denunciado num post anterior, a reacção das pessoas à visão esmagadora de um amontoado mastodôntico de ossos humanos, brancos como a pele de uma estereotipada dinamarquesa e augures óbvios da nossa finitude. A verbalização de que mais gosto é esta, com pequenas e insignificantes variantes: “O que nós somos e no que nos vamos tornar… Tanto faz ser pobre como rico, vai dar tudo no mesmo…”. Expressão seguida, não raramente, de gargalhada sonora e franca. Mais que o inteiramento da efemeridade da vida, o que me comove nesta palavras é o desejo que transparecem - a esperança de que a morte é a suprema niveladora [o catterpillar da assimetria social, económica, política ou religiosa]. A esperança de que lá fora, na noite eterna, todos são iguais, um monte de ossos brancos como a pele de uma estereotipada dinamarquesa.