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27.5.04

Desabafo

A lição parece clara: a humanidade também pode ser exposta como um animal no zoológico.

Se troquei a calma sensaboria de um gabinete pela rudeza indómita do “campo” e o portátil pela escova e pico, foi porque me sinto livre no seio da terra a esgaravatar o passado. Mas desta vez a liberdade foi-me cerceada. Uma escavação no centro da cidade, numa rua movimentada, sem barreiras erguidas entre mim e os transeuntes [somente as linhas de marcação da sondagem] pode ser uma jaula de zoológico. A sensação de estar constantemente a ser observado por alguém magoa. E como responder às centenas de perguntas e afirmações recorrentes: é ossos?, são de homens?, são dinossauros?, se calhar foram aí postos durante as invasões dos ingleses, que nojo, que espectáculo, que paciência, ó menino para que é que isso serve?, não seria melhor meterem aí a retroescavadora?, and so on. Uff. Em cada homem ou mulher, em cada criança e em cada velho que por ali passa existe um arqueólogo, um historiador, um eminente osteólogo. E eu, um animal que fuça na terra, desidratado, que por vezes nem sabe bem o que está ali a fazer.