A matança do porco
A minha avó acordou-me cedo, muito mais cedo que o normal em dia de escola. Eu devia ter uns 12 anos enfezados, o meu corpo não fora ainda assaltado pelas minudências da puberdade – os primeiros pêlos, uma ou outra espinha, a voz engrossada e o growth spurt na estatura. Mas ia iniciar-me num admirável mundo novo, a vivência dos adultos: encorpada numa matança de um animal de quem eu, por principio, não gostava – nojento, fuçando no estrume, estilando pestilentos odores, cujo nome próprio denuncia a sua javarda natureza.
O protocolo da matança é banal. O porco, ou porca, é deitado de costas numa mesa larga com meio metro de altura. As quatro patas do suíno são obstinadamente fixas às mãos nodosas dos homens enquanto o matador, com enorme sabre afiado, espeta o animal na jugular, de onde se evade o gorgolejante vermelho do sangue para um alguidar seguro pelas mulheres. Cheguei junto dos homens, o meu avô, o meu pai, o meu tio, o Tónio, o Zé Línguas e o matador João Seiça, protestando que não queria ficar ali a ouvir os guinchos terríveis que proclamavam a derrota do porco e através dos quais o animal certamente amaldiçoava aqueles duas pernas que o iam preparar mais tarde nas brasas.
“Não tenhas medo”, disse o meu avô, “agarras o porco na pata de trás comigo. É só para te ires habituando”. “Eu não tenho medo”, zanguei-me, “não gosto é de ouvir o choro do porco”. O Zé Seiça, enquanto afiava a faca, ia contando que assim que chegou aos matos de Angola andou a juntar os pedaços de dois companheiros que tinham pisado uma anti-pessoal nos próprios alforges dos dois coitados. “Uma bela história para encantar criancinhas”, pensei eu, néscio de todo. Lá nos abraçámos ao bicho que, depois de mortalmente ferido, vozeou ainda mais pragas e anátemas [não é assim tão difícil imaginar um porco taumaturgo, afinal eu olhei para o seu interior e pude comprovar que a melhor maneira de conhecer um homem é olhando para o corpo de um suíno] durante uns bons 20 minutos. Os primeiros sangues, rebeldes, vieram encalhar-se na minha face imberbe, apavorada, misturando-se com as lágrimas que, desse modo, ficaram escondidas pelo motivo que as provocou. No meio da confusão, o Tónio ainda teve o desplante de perguntar ao Zé Línguas algo pavoroso, violento: “Queres trocar a tua mulher pela minha?”; “Ora essa, merda por merda não vale a pena”, respondeu este, zombeteiro. Agarrado ao meu avô e à perna do animal trespassado, pensei: “Que porcos!”
O protocolo da matança é banal. O porco, ou porca, é deitado de costas numa mesa larga com meio metro de altura. As quatro patas do suíno são obstinadamente fixas às mãos nodosas dos homens enquanto o matador, com enorme sabre afiado, espeta o animal na jugular, de onde se evade o gorgolejante vermelho do sangue para um alguidar seguro pelas mulheres. Cheguei junto dos homens, o meu avô, o meu pai, o meu tio, o Tónio, o Zé Línguas e o matador João Seiça, protestando que não queria ficar ali a ouvir os guinchos terríveis que proclamavam a derrota do porco e através dos quais o animal certamente amaldiçoava aqueles duas pernas que o iam preparar mais tarde nas brasas.
“Não tenhas medo”, disse o meu avô, “agarras o porco na pata de trás comigo. É só para te ires habituando”. “Eu não tenho medo”, zanguei-me, “não gosto é de ouvir o choro do porco”. O Zé Seiça, enquanto afiava a faca, ia contando que assim que chegou aos matos de Angola andou a juntar os pedaços de dois companheiros que tinham pisado uma anti-pessoal nos próprios alforges dos dois coitados. “Uma bela história para encantar criancinhas”, pensei eu, néscio de todo. Lá nos abraçámos ao bicho que, depois de mortalmente ferido, vozeou ainda mais pragas e anátemas [não é assim tão difícil imaginar um porco taumaturgo, afinal eu olhei para o seu interior e pude comprovar que a melhor maneira de conhecer um homem é olhando para o corpo de um suíno] durante uns bons 20 minutos. Os primeiros sangues, rebeldes, vieram encalhar-se na minha face imberbe, apavorada, misturando-se com as lágrimas que, desse modo, ficaram escondidas pelo motivo que as provocou. No meio da confusão, o Tónio ainda teve o desplante de perguntar ao Zé Línguas algo pavoroso, violento: “Queres trocar a tua mulher pela minha?”; “Ora essa, merda por merda não vale a pena”, respondeu este, zombeteiro. Agarrado ao meu avô e à perna do animal trespassado, pensei: “Que porcos!”
<< Home