24.8.06
Toquei-lhe as pernas, sobretudo as pernas. Mas ela sabia, disse-mo, que o que eu buscava era o coração.
23.8.06
22.8.06
Saint-Dié des Vosges
Recordo sobretudo a longa viagem de autocarro e outras vagas, pequenas, reminiscências. A família de acolhimento, luso-française, benfiquistas de Chaves. A matriarca da família, de inconfundível sotaque à francês de Alcochete. Os bosques inexistentes. Um Portugal pequenino transplantado para a Lorraine francesa. Os cemitérios celtas. E este pequeno diálogo de surdos antes da partida.
-Filhinho, queres um gâteau para levares?
-Não, obrigado.
-Mas... Porquoi pas?!
-Já tive tantos… Os que o meu avô não matou [metia-os dentro de um saco e afogava-os], morreram atropelados. Vivo junto a uma estrada nacional.
-Não, obrigado.
-Mas... Porquoi pas?!
-Já tive tantos… Os que o meu avô não matou [metia-os dentro de um saco e afogava-os], morreram atropelados. Vivo junto a uma estrada nacional.
Frases iniciais exemplares
Foi Jorge Luis Borges, se não me engano, que sentenciou a importância crucial da primeira frase de um romance. O André Moura e Cunha concorda, e ainda bem. Um dos trechos seminais que mais aprecio é da autoria de Herman Melville, o livro é Moby Dick na edição de bolso da Penguin.
"Call me Ishmael. Some years ago -- never mind how long precisely -- having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world. It is a way I have of driving off the spleen, and regulating the circulation."
"Call me Ishmael. Some years ago -- never mind how long precisely -- having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world. It is a way I have of driving off the spleen, and regulating the circulation."
Etiquetas: Borges, literatura, livros, Melville
21.8.06
É Verão
Como se fosse um sinal adiado, a violação inquieta, fugaz, de um olhar sobre o outro. Manhã de encontros, porque não? Em mensagens de quatrocentos e cinquenta caracteres dou-te um beijo doce. Algum tempo passou desde que o confirmámos nos próprios lábios.
19.8.06
O segredo
O momento para te dizer isto não é o melhor, sei-o bem. Qualquer momento seria infausto para te acrescentar à consciência algo tão terrível, definidor. Mesmo assim, terei que te confiar este segredo.
Embora tenhas assassinado - repara que não te censuro por isso - a verdade é que não mataste todos. E os que ficaram vão querer vingar-se. Até o mal se deve fazer bem feito.
17.8.06
Estéticas da morte #oito
Seco, amarelado e curto. Operário e viúvo. Missa, domingos de manhã. Jogador de sueca, domingos à tarde. A biografia abreviada de um velho desconhecido. Uma forma inteligível de dizer que este homem, encorpado em flores e madeiras paupérrimas, teve um dia uma existência vivida, um parênteses na eternidade da morte.
Etiquetas: Estéticas da morte
13.8.06
Daedalus
1576800 minutos, 26280 horas, 1095 dias, 3 anos: quase uma vida. O prazer tem sido, sobretudo, meu. Agora, alguns dias de cálida vilegiatura. Até breve.
8.8.06
Uma citação quase sempre se adequa a alguma coisa que acontece
Não é raro que as verdades demasiado evidentes, e que deveriam ser subentendidas, acabem por ser afinal esquecidas.
[Alessandro Manzoni, História da Coluna Infame, Assírio e Alvim: Lx]
Etiquetas: citações
7.8.06
Manhãs de mar
Recordo as tranças do teu olhar e um beijo solto numa manhã de praia. O vento regrando a pele salgada, alguma areia metida nos calções. Sobretudo a areia imersa nos calções e um gesto de desespero para que te afastasses dela.
Cartilha de Malinowsky
When a man journeys into a far country, he must be prepared to forget many of the things he has learned, and to acquire such customs as are inherent with existence in the new land; he must abandon the old ideals and the old gods, and oftentimes he must reverse the very codes by which his conduct has hitherto been shaped.
[Jack London, 1900, In a far country, Dover Editions: NY]
4.8.06
Sopinha de letras
O mundo é uma maçã, pensou s depois de fechar as janelas do MSN. f tinha acabado de lhe contar que gostava de y, um rapaz que namorara com z, uma completa desconhecida para s. y acabou com z há uns meses e z, sem dúvida para tentar chantagear as emoções de y, meteu-se com o primeiro cromo que lhe apareceu: g. g é o ex-namorado da namorada de s: t. g escolheu a sua personalidade no catálogo da DSM IV e como é endinheirado não se poupou a luxos: foram-lhe diagnosticadas praticamente todas as psicopatologias enlencadas entre as letras b e r. Há quem diga que não é o paradigma da sociabilidade, mas s nunca se dignou a confirmar essas notícias. Enfim, interessa dizer que a z lhe foi diagnosticada uma depressão por osmose. Nunca é fácil viver ao lado de um louco. E y apaixonou-se por f, que só não se apaixonou ainda porque vai esperar pelo fim das férias.
Dias de festa
Esqueceu o mal a brincar, apalpando rabos aqui e ali, destoado entre aquelas pessoas, perguntando: Quem são estes monstros? Recear mesmo aquilo, não. Mas talvez o seu mistério chegasse mais tarde. Andou por ali mais um pouco, ainda bebeu mais uma Sagres. Bebeu mais muitas e morreu. O melhor é não ter mais nada para dizer.
3.8.06
Ódio
Há uma história incipiente no final de cada palavra. Nenhum ódio elide a vontade de permanecer fiel ao que sentimos. Nenhum ódio põe fim à história esgarçada que continua após o fim.
A antropologia da água
A antropologia é, todos o sabem, a ciência da mútua surpresa. O encontro com o Outro desconhecido marca indelevelmente a sua experiência empírica. Mas a água não guarda segredos, o homem nasceu nela e por isso conhece-a bem. Há um desejo de voltar à origem aquosa do útero, o túmulo primordial, para que seja ele, o homem, a revelar os seus segredos à água. Para que ela faça a sua antropologia.
2.8.06
Estéticas da morte #sete
Já foste negra, quando Bocaccio te lamentou e com incerto passo te vestiu de palavras. Quando ninguém sabia de onde vinhas e porque vinhas, apenas que vinhas. E punham-se a imaginar humores e miasmas, judeus e bruxas, mortos e criminosos, quase tudo menos os ratos e as pulgas. Tão infímos e ridículos que ninguém deu por eles, senão muito tarde. Mas, de que servia saberes como vinhas? És a certeza de um incerto ano.
Etiquetas: Estéticas da morte
1.8.06
Um sopro
Talvez tenham percebido a conspiração no momento em que os seus olhares se intersectaram, entre dois passos e o fumo esparso de um bar mal frequentado. Por um instante, apenas, o périplo do mal revelou-se com uma fina intensidade e clareza. Com se fossem um único, os três homens somaram instantaneamente todos os actos pelos quais se deviam arrepender e, abjurando o passado escolhido, confiaram que nunca mais se veriam. Sem se aperceberem que, sendo fortes num único momento, podem ser cobardes o resto da vida.