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30.5.10

Passeio Público

{Boa vizinhança}
As cidades – qualquer cidade – são um milagre porque, apesar de todos os problemas que as abalam e consomem, são ainda assim capazes de sobreviver, de cerrar os punhos e continuar. As paisagens desmesuradas, desfecho pouco subtil de um crescimento mal planeado mas certamente pretendido por autarcas rendidos ao peso da demografia, simbolizam todas as contrariedades do burgo sublimado: culturas pobres e transientes, marginalização e opressão, esquecimento histórico, passividade identitária, omissão relacional.

As cidades vivem uma espécie de derrotismo romântico, em parte assente na combinação de um incitamento, oficial e arrebatado, das relações (através de festivais, de concertos, de arraiais, de mercados de rua, etc.), e de um modo tragicómico para destruir as possibilidades relacionais (através da construção de bairros estrangulados pelo cimento ou da destruição passiva dos centros históricos).

Neste contexto, percebe-se que exista um “Dia Europeu do Vizinho”. É verdade que agora o vizinho, aquele ou aquela que nos é contíguo, é muitas vezes apenas mais um desconhecido. Em Coimbra, uma cidade de dimensão média, a estrutura relacional ainda aguenta as vicissitudes da solidão contundida do crescimento. Naquele dia organizaram-se pequenas festas, trocaram-se elogios entre fumos de churrasco, dançou-se com o vizinho do 2.ºE.

Obviamente, em Coimbra o “vizinho” é ainda mais do que uma série de metáforas, palmadinhas nas costas e palavras afáveis – encorpadas num só dia, e depois esquecidas. Na Relvinha, em Santa Apolónia ou no Quebra-Costas, a “boa vizinhança” é assunto de ano inteiro e não apenas uma data exclusiva marcada no calendário por algum burocrata de Bruxelas.

Apesar das ciladas próprias da existência, e das manigâncias despreocupadas do poder autárquico, na cidade de Coimbra ainda se sente a presença do «vizinho», o outro próximo com uma saudação risonha ou uma mão do sal que falta à mesa.
{Sexta-feira, 28 de Maio, no Jornal de Notícias}

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25.5.10

Passeio Público

{Nas trevas}
Achamos horrível a cegueira, um purgatório onde não há sugestão de luz e redenção ou, de qualquer modo, um lugar longínquo na memória da nossa imaginação. José Saramago anota esta concepção trágica da “vivência nas trevas” na nossa sociedade, fazendo dizer a uma das personagens do “Ensaio sobre a cegueira» que esta é também viver num mundo onde a esperança acabou.

No fundo, e seguindo de perto o meu amigo Bruno Sena Martins (antropólogo que estuda desde há muitos anos a cegueira, enquanto circunstância ancorada a uma paisagem social e cultural que a exclui e marginaliza), a sociedade pensa e representa a deficiência como uma “narrativa de tragédia pessoal”, um discurso onde as representações culturais sobre a cegueira assumem quase sempre uma dimensão catastrófica e trágica.

O aparecimento de restaurantes que “oferecem” ao cliente a possibilidade de tomarem uma refeição completamente às escuras é um fenómeno curioso, configurando uma variação interessante do velho jogo do “E se eu fosse cego?”. Um jogo onde cada um de nós toma consciência de que a cegueira é indubitavelmente uma tragédia assustadora mas também um jogo em que cada um de nós habita por momentos o mundo do Outro invisual.

Não surpreende, pois, a iniciativa conjunta da Paróquia de São João Baptista (Coimbra) e da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) – a celebração de uma missa às escuras. Mais de uma centena de pessoas, invisuais e visuais, puderam assistir, em igualdade de circunstâncias, à missa no pré-fabricado que serve de Igreja à nova paróquia. É preciso calçar os sapatos do outro para o conhecer melhor, sobretudo quando a alteridade parece tão radical.

O gesto de solidariedade da Paróquia de São João Baptista e da ACAPO não pretendeu certamente lembrar a quem vê o pavor da cegueira, mas mostrar que os invisuais existem e que são iguais a nós: humanos, importantes, visíveis.
{Sexta-feira, 21 de Maio, no Jornal de Notícias}

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17.5.10

Passeio Público

{As flores e os pirómanos}
A Queima das Fitas. Parece tudo igual. A encenação é a mesma, apesar dos actores que se rendem de ano para ano. É preciso procurar a diferença nos pormenores – é na minudência que se esconde a transformação. O Cortejo dominical, os dias multiplicados de festa, a música pouco potável ou os cachecóis vermelhos surgem inopinadamente na paisagem académica conimbricense e dão eco à ínfima metamorfose de um ritual previsível mas esperado com ansiedade pelos estudantes de Coimbra.

O alcatrão, dos Arcos à Portagem, espraia-se por inamovíveis quilómetros, recebe os despojos da embriaguez e do desleixo, testemunha a perda pelo fogo de alguma mensalidade de dedicação, trabalho e assembleia. Não se percebe o destino de tantos carros alegóricos: as chamas da inquietude. Mesmo que algum jornal regional se empenhe na classificação étnica do pirómano (o «incendiário espanhol»), em disposição xenófoba encapotada, a verdade é que os carros já ardiam antes e hão-de continuar a arder – sob o isqueiro de um inconsciente/tolo/selvagem qualquer.

Para além do absurdo, a retórica explicativa vale pouco: os que incendeiam carros em Coimbra não seguem qualquer ideologia, ao contrário daqueles que queimam carros nos banlieues parisienses e que apenas desejam transcender os limites uma sociedade que não os deseja. Que se saiba, o idealismo não é o forte de um «pirómano de Queima», embora na sua mente desassossegada se encontrem o vazio e o nada niilistas. Os pirómanos não ligam à teoria, mas à prática. A teoria arde mal.
Evidentemente, qualquer explicação é, também, uma desculpabilização – mas não é disso que se trata aqui. Sem lenha o fogo apaga-se. É esta a moral de Salomão. As flores de papel que enfeitam os carros da Queima não são essenciais, digo eu, ao bom funcionamento do Cortejo. Sem elas, os pirómanos ficam em casa.
{Sexta-feira, 14 de Maio, no Jornal de Notícias}

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8.5.10

Passeio Público

{A linguagem do progresso}
Li a entrevista que Pedro Vaz Serra, o presidente do Clube de Empresários de Coimbra (CEC), concedeu recentemente ao “Diário de Coimbra” e, apesar da omnipresença de um glossário empresarial demasiado técnico para o meu parco entendimento, simpatizei com o tom geral das respostas – sobretudo porque Vaz Serra parece não ter sucumbido à fantasmagoria apocalíptica da crise que contamina indiscriminadamente a sociedade portuguesa.
Nesse sentido, o dirigente máximo do CEC aponta caminhos e sugere estratégias que sustentem o desenvolvimento da cidade de Coimbra e, lato sensu, de toda a região Centro. As ideias de Pedro Vaz Serra são geralmente boas, mas vagas e superficiais – talvez a paisagem limitada de uma entrevista não admita qualquer tipo de pensamento complexo ou, muito simplesmente, distante dos chavões do “economês”.
É extremamente fácil circunscrever as hipóteses de crescimento económico a noções vagas como “Investigação & Desenvolvimento”: um tema que se integra claramente no princípio da comunicação tecidual, que se repete e propaga de forma acrítica. A linguagem torna-se, necessariamente, pobre e redundante. As palavras de Vaz Serra convocam uma ideia de repetição, de continuidade estática, que subsume a realidade a uma gaveta fátua de poses e estados.
Mesmo assim, a insistência no dueto redentor “Investigação & Desenvolvimento” poderá servir para suprimir, mesmo que lenta e incompletamente, o crónico atraso português, relacionado com as fracas competências dos gestores e trabalhadores, do analfabeto funcional ao doutorado. Os protocolos celebrados com a Universidade e o Politécnico são boas iniciativas, que podem ajudar a preencher o espaço lacunar que medeia a academia do mundo do trabalho, mas são também, e infelizmente, apenas grãos de areia num deserto de indefinições e desorientação.
{Ontem, 07 de Maio, no Jornal de Notícias}

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7.5.10

Procurai a sua face


(George Stubbs, circa 1765, Gimcrack, with John Pratt up, on Newmarket Heath, Fitzwilliam Museum, Cambridge)

Eis um eco do cânone messiânico da perfeição: Gimcrack, o nobre, nascido da paixão de Stubbs. Sente-se a relação jurídica com o cavaleiro (John Pratt); não obstante, o cavalo vem primeiro. Aparentemente, esta comunidade solidária (mas nem por isso) pressupõe um mundo no qual as parábolas excluem o próprio mundo e se regem pela imaginação científica, tensa e nervosa - que ultrapassa nitidamente a realidade. A Lei torna-se Animal, em nada se revoga o horror da encarnação.

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6.5.10

A idiotice

Et incarnatus est.

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3.5.10

Na estrada de Damasco

Sou filho do filho - de novo - apesar dos lobos que ainda esperam o extermínio.

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