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19.2.11

Passeio Público

(Vontade de varrer o lixo) Coimbra já foi (diz-se) a terceira cidade do país. Agora é apenas mais uma (entre tantas, algumas mais pequenas e insignificantes que Nazaré, o povoado da Galileia onde viveu Jesus Cristo). A perda é um fim de mundo, descrita como a história possível que deixou de o ser. Aquiles surgiu do outro lado da muralha e desbaratou o que restava de um sonho. Naturalmente, pode julgar-se que a cidade se foi destruindo por dentro, sem que para isso fosse necessária qualquer intervenção de forças alienígenas e mortais. As histórias deste teor são muitas e, desafortunadamente, parecem repetir-se ciclicamente, como se as crises auto-destrutivas devessem alguma coisa à biologia das lampreias. Persiste, é certo, uma vontade pertinaz de sobrevivência. Alguns actores da cidade não se renderam ainda à moleza semântica do “passado glorioso” ou às convicções estultas de alguma contemporaneidade. Os bons exemplos abundam e desses modelos de dinamismo a cidade ainda tem muito a esperar. Por exemplo, estes últimos dias têm sido pródigos em novidades na Universidade de Coimbra. O novo reitor já foi escolhido (Professor Doutor João Gabriel Silva) e a velha Cabra parece nova, depois das remodelações a que foi submetida no último ano. Duas boas notícias – que contam muito, certamente, para a candidatura da Alta de Coimbra a Património Mundial da Humanidade. Felizmente, a Universidade persevera apesar das dificuldades, da evidente nostalgia pelo passado que se resguarda em velhas paredes devolutas.Quão distantes parecem os paradigmas que brotam da Universidade, dos grupos de Teatro, dos Hospitais, dos artistas ou de algumas empresas daqueles que se revelam nas trapalhadas que governam Coimbra. Mesmo assim a cidade não desiste, nem quando deixa de haver vontade de varrer o lixo.

(Ontem, 18/02 no Jornal de Notícias)

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12.2.11

Passeio Público

{Antes da morte}

O pior da vida é que se morre. Mais tarde ou mais cedo morre-se – podemos dizê-lo com a segurança rigorosa de que carecem, por exemplo, os dogmas religiosos ou os orçamentos da nação. Claro que morrer é um passo definitivo lógico, se pensarmos na vida como um ciclo fixo e predeterminado: vivemos, logo morremos. Mas chega de falar da morte, desse local inabitado. Falemos do que vem antes: das alegrias e das misérias, dos poros descerrados pelo sol, das cesuras deste vale de lágrimas.

O que vem antes. Satisfação, sofrimento. Apesar da possibilidade do apocalipse económico, parece-me óbvio que merecemos mais a primeira (a satisfação) que o segundo (o sofrimento). A felicidade não é obrigatória mas devia ser pelo menos uma opção. Para muitos, infelizmente, é apenas uma palavra.

Toda esta elucubração (confesso: um pouco negra) teve origem numa única – e terrível – notícia: “a fome (é mesmo esta a palavra) aumenta nas escolas de Coimbra”. O relato jornalístico não esclarece se esta “fome” é como a “fome em África” ou, de qualquer modo, se está relacionada com a ideia que nós, ocidentais sobrealimentados, temos do que é a “fome em África”. Julgo que não é desse flagelo que se fala, quando se fala de “fome” em Coimbra – mas de outra coisa, quase tão grave como as multidões de subnutridos: fala-se de condições de vida miseráveis, com tendência para piorar.

Onde os políticos vêem uma estatística, nós devemos ver um desastre. Uma criança que necessita de uma refeição escolar para não ter “fome” é um bramido de tristeza; não é um número numa tabela estatística. Representa um país apodrecido – incapacitado pela ganância e pela burrice. Mais interessante que as faces condoídas e mais urgente que a esmola piedosa é a mudança de paradigma económico e social.

{Sexta-feira, 11/02 no Jornal de Notícias}

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4.2.11

Passeio Público

{Dois mundos}
Os mal-entendidos que têm rodeado a cidade de Coimbra, desde o circo do Metro até à renúncia extemporânea de Carlos Encarnação, não sufocam – de todo – o orgulho e a alegria que resultam quer da “inauguração oficiosa” do novíssimo Hospital Pediátrico, quer da visibilidade internacional crescente da venerável Universidade. Uma apreciação rígida destes eventos que vêm marcando a cidade poderá concluir da diferença irredutível entre aqueles que servem a cidade e aqueles que se servem da cidade. Ao fim e ao cabo, talvez seja esta diferença a paradoxal intérprete dos eixos que retesam Coimbra entre o desenvolvimento e a estagnação.
A homérica transferência que ocorreu no último sábado (29 de Janeiro) entre as antigas e as novas instalações do Pediátrico tangeu o acorde maior (a “inauguração oficial” nunca será mais que um ritual de alarde e presunção) de um processo que se arrastou molemente por intérminos anos – bem descritos pela derrapagem dos custos de construção (nada de novo se anuncia debaixo do sol português) ou pela escolha desinspirada do local de edificação (o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha configura um paradigma semelhante mas com a desvantagem dos séculos).
Como é lógico supor, a limpidez desta história transformar-se-á facilmente numa margem esquecida de um corpo. O esquecimento é adequado. As excelentes instalações do novo Hospital Pediátrico, aliadas às reconhecidas capacidades dos seus profissionais de saúde (que transitam do antigo), devem ser as justas características que irão regular as conversas sobre a instituição.
À primeira vista, Coimbra vive imersa num antagonismo ontológico entre frescos que representam a elevação à justiça e a queda na boçalidade. O Hospital Pediátrico e a Universidade mostram-nos objectivamente que é necessário desqualificar aqueles que se agarram aos próprios erros, aqueles que recusam libertar-se do mundo ambíguo das habilidades e mentiras.
{04/02, no Jornal de Notícias}

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Passeio Público

{Tipicamente lusitano}
Neste país conhecem-se tarde as trapalhadas, os equívocos e as malfeitorias que se vão praticando em nome do Estado, como se a realidade vertesse sempre de uma confissão contrita, mas tardia, aos antigos padres da província. Lentamente, vão sendo dados a saber muitos dos processos que contribuíram (na sombra da lei e da ética) para que um país tão pequeno chegasse a ter uma crise económica e social tão grande.
Para a maior parte das pessoas de bem, a Lusitânia é uma antiga província romana, a oeste da Península Ibérica, onde viviam e morriam os audazes lusitanos, nossos putativos antepassados, e cuja capital era Emerita Augusta (a Mérida espanhola). Para uma ínfima minoria de iluminados, a Lusitânia é (ou era, não se sabe ainda muito bem) uma “Associação de Desenvolvimento Regional”, que deveria promover o investimento produtivo e o desenvolvimento social numa vasta região, que engloba dezasseis municípios dos distritos de Coimbra, Guarda e Viseu.
A associação, que existe desde 2002, vai ser dissolvida. O seu legado é parco e obscuro; para além de um ou outro site disfuncional, não se lhe conhecem actividades, programas ou resultados. Da sociedade resta somente um rol de despesas, de dinheiro desperdiçado em projectos espectrais e desígnios sem interesse para a região. Depois da miséria que nos foi dada agora a conhecer (vinte e cinco milhões de euros de fundos comunitários, públicos e municipais gastos não se sabe muito bem em quê) resta-nos a esperança que nada disto voltará a acontecer.
Mas é difícil acreditar nisso. O desperdício de dinheiro é um hábito antigo e enraizado, um fenómeno tipicamente lusitano. É quase a afirmação de uma identidade.
{28/01, no Jornal de Notícias}

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