Passeio Público
{Antes da morte}
O pior da vida é que se morre. Mais tarde ou mais cedo morre-se – podemos dizê-lo com a segurança rigorosa de que carecem, por exemplo, os dogmas religiosos ou os orçamentos da nação. Claro que morrer é um passo definitivo lógico, se pensarmos na vida como um ciclo fixo e predeterminado: vivemos, logo morremos. Mas chega de falar da morte, desse local inabitado. Falemos do que vem antes: das alegrias e das misérias, dos poros descerrados pelo sol, das cesuras deste vale de lágrimas.
O que vem antes. Satisfação, sofrimento. Apesar da possibilidade do apocalipse económico, parece-me óbvio que merecemos mais a primeira (a satisfação) que o segundo (o sofrimento). A felicidade não é obrigatória mas devia ser pelo menos uma opção. Para muitos, infelizmente, é apenas uma palavra.
Toda esta elucubração (confesso: um pouco negra) teve origem numa única – e terrível – notícia: “a fome (é mesmo esta a palavra) aumenta nas escolas de Coimbra”. O relato jornalístico não esclarece se esta “fome” é como a “fome em África” ou, de qualquer modo, se está relacionada com a ideia que nós, ocidentais sobrealimentados, temos do que é a “fome em África”. Julgo que não é desse flagelo que se fala, quando se fala de “fome” em Coimbra – mas de outra coisa, quase tão grave como as multidões de subnutridos: fala-se de condições de vida miseráveis, com tendência para piorar.
Onde os políticos vêem uma estatística, nós devemos ver um desastre. Uma criança que necessita de uma refeição escolar para não ter “fome” é um bramido de tristeza; não é um número numa tabela estatística. Representa um país apodrecido – incapacitado pela ganância e pela burrice. Mais interessante que as faces condoídas e mais urgente que a esmola piedosa é a mudança de paradigma económico e social.
{Sexta-feira, 11/02 no Jornal de Notícias}
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