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24.11.10

Passeio Público

{Água da vergonha}

É natural que se tema por um país transformado em cordeiro desorientado, disponível para a auto-imolação, cujo motivo ideal contempla um presente sofrível e pouco mais. Muitos dos problemas do país radicam de uma indiferença histórica – pouco compreensível – perante o património, a herança que parcialmente nos cria e descreve. Não se pode esperar grande coisa do futuro quando se desrespeita o passado.

E qual a melhor palavra para descrever a decisão de deixar submergir a linha do Tua? Ocorre-me, precisamente, o vocábulo «desrespeito». Desrespeito pelo odor espesso da tradição, pela fragilidade da paisagem. O desaparecimento da linha centenária revela ao país (não esqueçamos: multissecular) que lhe resta apenas a fria aceitação da vacuidade. Infelizmente, um desastre assim não se encontra suspenso de um veto. Os homens bons não são suficientes para cegar o olho do erro.

A Universidade de Coimbra (UC), pelo contrário, não mostra receio pelo passado. Procura a identidade em respostas seculares, projectando-se decisivamente no futuro. O dossier de candidatura da UC a Património da Humanidade já foi entregue à Comissão Nacional da Unesco e os sete volumes que a compõem simbolizam outros tantos séculos de história – bem como a expectativa do porvir. A Universidade é reconhecida em todo o mundo – talvez um pouco menos em Portugal, que tantas vezes a despreza (por velha e ultrapassada) sem se dar ao trabalho de a conhecer.

A Universidade de Coimbra deverá ser uma das poucas instituições que sobreviverá ao grande naufrágio português. A pedra sobre a qual assenta é imperturbável. A um passado glorioso corresponderá, certamente, um futuro afortunado. A água da vergonha é um espectro de outros.

{19/11 no Jornal de Notícias}

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Passeio Público

{Luzes apagadas}

Ainda vem longe o fim de Novembro mas já pode dizer-se, com propriedade, que o Natal é todos os dias. Na televisão e nas montras dos centros comerciais, pelo menos. Nas ruas das cidades talvez não. E ainda bem. A ubiquidade precoce da quadra nos processos e discursos de um capitalismo voraz e capcioso (para além de tudo o resto) esvazia-a de significado. Para além disso, não consigo gostar dos paramentos luzidios que enfeitam árvores nas ruas – não consigo gostar, tão-pouco, da árvore de Natal propriamente dita.

Naturalmente, aplaudo a decisão da Câmara Municipal de Lisboa de não montar a desmesurada árvore de Natal no Parque Eduardo VII. A resolução é um arrojo de sabedoria: porque poupa dinheiro aos cofres da autarquia e, sobretudo, porque nos poupa à fastidiosa lengalenga televisiva da “maior árvore de Natal do universo”.

Na realidade, o nosso país parece já não sobreviver sem um certo espírito próprio da época, deprimente, fomentado por temas tão díspares como a árvore gigante, o bolo-rei do Guiness ou o salto de pára-quedas de um senhor trajado como o Pai Natal. As luzes esparramadas à beira das estradas compõem, de forma similar, a atmosfera desse folguedo melancólico. Porém, este ano as circunstâncias são bem diferentes.

A crise económica contundiu as finanças das autarquias e, como tal, a restrição nos gastos com a iluminação de Natal é tão acertada como decente. Em Loures e Palmela não haverá qualquer luz natalícia promovida pelas respectivas Câmaras Municipais. A contenção é o mote também em Oeiras, Amadora, Santarém, Almada, Seixal, Cascais, Beja ou Faro: as reduções variam entre os 25% e os 68%. Em Coimbra, o corte será de apenas 10%. Porque será que isso não me surpreende?

{11/11 no Jornal de Notícias}

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8.11.10

Passeio Público

{Um carro sobre carris}
Os Belle Chase Hotel reúnem-se «para matar saudades» e acicatar a nostalgia dos fãs. Enfim, não surgirá um álbum novo mas alguns concertos com a formação original estão irreversivelmente garantidos. Em termos muito gerais, este será o tema principal nos próximos tempos – a bem-aventurança (com prazo de validade) terá início no próximo dia 12 (Teatro Académico de Gil Vicente, Coimbra).

O infortúnio é axiomático: não é possível habitar indefinidamente num microcosmo musical edénico, incomunicável e reservado. As asperezas da realidade destroem qualquer ensejo de sanidade. A tendência geral é a da perda ou da queda. A crise económica absoluta, que nos açaima tão confiadamente, não coíbe algumas figuras, ditas «com responsabilidade», de revelarem uma índole pouco rigorosa. De forma similar, certas organizações empresariais, com capital maioritariamente público (espaços sensíveis do perene recontro entre a honestidade e a ratonice), acumulam a desdita por inépcia e, em simultâneo, cultivam os terrenos férteis da impudência. Os exemplos são muitos, decerto, mas consideremos apenas o exemplo triste – e tão recente – da despesa com automóveis da Sociedade Metro Mondego (MM).

Asseguro-vos que meu horizonte mental se prolonga para além da MM. No entanto, o martirológio da empresa não cessa de me alvoroçar. Pouco tempo após o anúncio de agregação da MM à Refer, ficamos a saber que os maiorais da administração daquela preferem a BMW às carruagens do “Eléctrico Rápido de Superfície”. Para alguns, chegar à Lousã é fácil. Sabemos agora porquê: os carros parecem ter sido mais valorizados que os carris. É esta a ética empresarial que guia o país para os píncaros do sucesso? Não me parece.

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1.11.10

Passeio Público

{Violência, condescendência}
A violência não é uma saída discreta (ou desejável) para o mar de frustrações que atormenta o tipo humano médio. Perante uma adversidade maior, ou uma discussão veemente, nem sempre é fácil contestar a pulsão ancestral, atávica, implantada nos meandros mais obscuros da nossa mente, que segue preferencialmente a via dos punhos ao invés do caminho dos mansos e das palavras de apaziguamento. Naturalmente, a moral e a lei existem também para contrariar esses caprichos – ou tiranias – da “natureza humana”. Quando caem as muralhas éticas o resultado é, o mais das vezes, assustador.

A fria atenção do mundo aos fenómenos crescentes de violência injustificada nem sequer é surpreendente (afinal, o que interessa verdadeiramente à plutocracia pós-moderna é o frenesim dos mercados); todavia, parece-me importante reflectir sobre situações concretas que justapõem um véu sombrio sobre eventos facilmente descritos como “festivos”.

É o caso da Latada, em Coimbra, e do “imprescindível” episódio de violência que todos os anos aformoseia a festa académica. Um relato prévio, à laia de contexto. Na última Queima das Fitas, durante o Cortejo, assisti desgostado a uma cena de pancadaria digna de filme americano (sem desmerecer Bud Spencer ou Terence Hill), envolvendo uma dezena ou mais de pessoas. Nunca saberei realmente o que se passou naquela tarde de Maio, o que determinou aquela dissonância física, mas recordo bem a apatia de dois agentes da Polícia de Segurança Pública que, naquele momento crítico, desprezaram por inércia a segurança e o público.

Já esta semana, na Latada, o arroubo violento foi similar: foram agredidos cinco estudantes com “navalhas e soqueiras”. Ah!, país de brandos costumes. A segurança privada não viu, a polícia chegou tarde e Miguel Portugal garantiu que o que aconteceu no recinto poderia ter acontecido noutro sítio qualquer (Charles de la Palice abençoaria, seguramente, a lucidez do presidente da DG/AAC). A colossal condescendência das estruturas de poder (no caso, a polícia, a segurança privada e a direcção da AAC) perante a derrocada da razão não é mais do que um sintoma geral de fraqueza da democracia.
{29/10, no Jornal de Notícias}

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Passeio Público

{Pontapear um morto}
Quando jogo no Euromilhões – é cada vez mais raro – só excepcionalmente acerto em mais que uma estrela ou número. Posso confessar, sem mentir, que nunca ganhei mais do que oito ou nove euros no jogo que «faz excêntricos». Também não possuo uma habilidade especial para prever tempestades e muito menos quedas abruptas no mercado bolsista. Enfim, a máscara fulgente do oráculo não combina com a minha personalidade bisonha.

Infelizmente, há muito que adivinhei o terrível destino do Metro na cidade Coimbra. A demissão de Álvaro Maia Seco, presidente da Metro Mondego (MM) e vereador da Câmara Municipal de Coimbra (eleito pelo Partido Socialista), marca de forma indelével o acto final de uma comédia que se transformou irreversivelmente numa tragédia: para Coimbra, mas também para a Lousã, para Miranda do Corvo e para toda a região.

A proposta de Orçamento de Estado para o próximo ano, apresentada na última sexta-feira pelo governo de José Sócrates, determina a obliteração da MM e a sua inclusão na REFER. Na sequência da deliberação governamental, Maia Seco declarou que o projecto do metro ligeiro de superfície foi «ferido de morte» – também o creio. Contudo, não imputo ao actual governo socialista toda a responsabilidade pelo enredo deste reles folhetim. A culpa divide-se forçosamente por mais do que um incompetente.

A MM pisou trilhos dolorosos, e erráticos, modificando constantemente as estratégias que alicerçavam o projecto e tremendo perante os desafios mais insignificantes (quem não recorda as críticas ao traçado do metro por um grupo de “pais preocupados”?). Na realidade, a história do MM encontra-se desde o início (desde 1996!) sob a sombra da cruz. O governo, ao integrar a empresa na REFER, teve o descaramento de pontapear um morto. A iniquidade de uns não desculpa a agnosia de outros.
{22/10, no Jornal de Notícias}

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