Passeio Público
{Água da vergonha}
É natural que se tema por um país transformado em cordeiro desorientado, disponível para a auto-imolação, cujo motivo ideal contempla um presente sofrível e pouco mais. Muitos dos problemas do país radicam de uma indiferença histórica – pouco compreensível – perante o património, a herança que parcialmente nos cria e descreve. Não se pode esperar grande coisa do futuro quando se desrespeita o passado.
E qual a melhor palavra para descrever a decisão de deixar submergir a linha do Tua? Ocorre-me, precisamente, o vocábulo «desrespeito». Desrespeito pelo odor espesso da tradição, pela fragilidade da paisagem. O desaparecimento da linha centenária revela ao país (não esqueçamos: multissecular) que lhe resta apenas a fria aceitação da vacuidade. Infelizmente, um desastre assim não se encontra suspenso de um veto. Os homens bons não são suficientes para cegar o olho do erro.
A Universidade de Coimbra (UC), pelo contrário, não mostra receio pelo passado. Procura a identidade em respostas seculares, projectando-se decisivamente no futuro. O dossier de candidatura da UC a Património da Humanidade já foi entregue à Comissão Nacional da Unesco e os sete volumes que a compõem simbolizam outros tantos séculos de história – bem como a expectativa do porvir. A Universidade é reconhecida em todo o mundo – talvez um pouco menos em Portugal, que tantas vezes a despreza (por velha e ultrapassada) sem se dar ao trabalho de a conhecer.
A Universidade de Coimbra deverá ser uma das poucas instituições que sobreviverá ao grande naufrágio português. A pedra sobre a qual assenta é imperturbável. A um passado glorioso corresponderá, certamente, um futuro afortunado. A água da vergonha é um espectro de outros.
{19/11 no Jornal de Notícias}
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