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24.9.10

Isto era um homem #1

D’Arcy Thompson, nome do meio Wentworth (facto honesto, poucas vezes indicado nas biografias), o derradeiro polímato, habituou-se a passear as longas (eu diria veterotestamentárias) barbas pelas ruas de St. Andrews com um papagaio pelo ombro, não sei se o esquerdo ou o direito – sendo certo que ninguém ainda se encarregou de desvendar tão irrelevante detalhe, para usufruto nosso e dos vindouros. Dele se conta que poderia ter sido classicista, matemático ou biólogo – como se não pudesse ser isso tudo de uma vez, ou pelo menos classicista de manhã, matemático à tarde e biólogo durante as refeições. A verdade é que D’Arcy não era homem de um só livro (homo unius libri) solitário, único. Não que isso seja um defeito, ou uma falha de carácter: aos homens de uma só mulher única, e.g., costumam aditar-lhe o halo sacrossanto à figura; ressalva-se, ainda assim, a lírica que lhes compõem em balneários masculinos e cafés de aldeia provincial.

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22.9.10

Passeio Público

{Realidade e pipocas}
A beleza produz milagres – se acreditarmos em Gogol – mas só a violência parece criar a sensação de realidade. A violência próxima, a disrupção urgente e fugaz do dia-a-dia, alimenta condições de absurdo em que tudo é tão concreto que, paradoxalmente, lembra a ficção. Quando um grupo de ladrões tenta assaltar as instalações da Prossegur, em Taveiro, a situação é vista por testemunhas, não como um incidente ancorado a uma grave crise económica e social ou como uma manifestação de insegurança crescente, mas como “um filme”. De gangsters, suponho.

Infelizmente, o “filme” nem sequer é muito original. No final do ano passado, um grupo fortemente armado tentou roubar uma carrinha da Esegur que transportava cinco milhões de euros – o assalto falhado ocorreu a poucos quilómetros da zona industrial de Taveiro. Apesar de constituírem actos falhados, estes assaltos provam que a criminalidade violenta possui um palco privilegiado no eixo fundado ao longo da via rápida de Taveiro. O fluxo ininterrupto de crime nesta zona cria uma expectativa de retaliação policial – que todavia parece não germinar.

O planeamento cuidado destes assaltos (bem como a extrema violência a eles associada) configura um tipo de crime pouco habitual no nosso país. Daí à fantasia cinematográfica vai um insignificante – mas perigoso – passo. A ficção conjura a impunidade: a vida imita a arte (pode dizer-se) mas, em todo o caso, não há perdas reais na segunda. Na verdade, não há vítimas a lamentar, ou prejuízos materiais avultados, mas é certo que também não há criminosos na prisão. A polícia (neste caso, a Guarda Nacional Republicana) descobriu os seus carros vandalizados – e descansou na coxia, como se esperasse o recomeço de um filme americano.

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Passeio Público

{Conhecimento mútuo}
Existe uma predilecção moderna pela demagogia – ou, se quisermos, pela manipulação primária dos sentimentos das pessoas, independentemente do seu grau de instrução ou conta bancária. Lêem-se diariamente muitos disparates atribuídos ao presidente francês Nicholas Sarkozy, mas até agora nenhum alimentou tanta celeuma como a sua decisão de expulsar famílias inteiras de ciganos de França. O ambiente em França não é ainda o da Löwenbräukeller, em Munique, durante a década de 1930, mas é revelador de um sentimento quase generalizado que perpassa a fortaleza europeia, um espaço cada vez mais claustrofóbico, recluso e inacessível, abafado pelo véu fétido da xenofobia.

Felizmente (e apesar dos inquietantes dados relativos à percepção que a maioria dos portugueses revela em relação aos indivíduos de etnia cigana) nalgumas regiões da velha Europa as medidas repressivas radicais do Estado francês foram substituídas por programas bem mais inclusivos – que não punem a diferença, nem a transfiguram num bode expiatório. Nesse aspecto, Coimbra é um exemplo. A cidade – através de associações de moradores, de plataformas sem fins lucrativos e, também, da Câmara Municipal – tem promovido iniciativas de conhecimento mútuo entre comunidades, empenhou-se no projecto “Planalto Seguro” e implementou uma conjuntura alternativa de coabitação, no bem sucedido caso do Parque Nómada, ou «Centro de Estágio Habitacional», nos campos do Bolão.

Claro que persistem falhas, e deselegâncias: recentemente, cerca de 70 pessoas de etnia cigana foram «convidadas» a abandonar a zona do Bolão. Depois, num acesso de bondade ingénua que soou antes a boutade, o vereador da Habitação Francisco Queirós, aconselhou aquelas famílias a «irem para o Parque de Campismo». Nestas coisas, faz sempre falta um pouco de bom senso, de educação e de conhecimento mútuo.
{11/09, no Jornal de Notícias}

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