Passeio Público
(Pescar no aquário)
Numa altura em que o mundo se encontra sepultado na escuridão de uma crise de proporções indizíveis, a inauguração de um empreendimento de aquacultura em Mira (distrito de Coimbra) aviva, senão um entusiasmo desmedido, pelo menos alguma esperança na possibilidade de salvação do enfraquecido sistema económico português.
Inaugurado pelo primeiro-ministro José Sócrates, o projecto “Acuinova” (do grupo galego “Pescanova”) poderá criar cerca de 800 novos postos de trabalho, entre “empregos directos” e “indirectos”, na zona de Mira, produzirá entre sete a dez toneladas de pregado por ano, e irá contribuir muito para o aumento das exportações.
O maior empreendimento de aquacultura de peixes planos do mundo (anoto o presumível regozijo dos portugueses perante tamanho sucesso, idêntico ao júbilo antes manifestado pelo valor da transferência de Cristiano Ronaldo para o Real Madrid ou pelas dimensões do novo centro comercial na Amadora) assemelha-se a um inventário de bem-aventuranças, mas nem tudo é inocência e bondade.
A Quercus é quem o assevera: o viveiro encontra-se situado junto à orla costeira, em zona de rede Natura 2000, e vai certamente destruir dunas e incrementar a erosão costeira. O Ministério do Ambiente desmente a Quercus: todas as normas ambientais foram escrupulosamente cumpridas. Acredito que sim. Espero que sim. Mas desconfio.
Recordo que só quando saí de casa dos meus pais (e fui obrigado a fazer as compras da semana) é que percebi que a maioria dos peixes à venda nos supermercados provinha, não do mar largo, mas de aquários de criação. O único (e breve) contacto que tive com a aquacultura, e com os peixes crescidos nessas quintas de criação intensiva, foi na Serra da Estrela, num dos viveiros de trutas da região – provavelmente durante os anos de 1990. Não gostei do que vi: o espaço era exíguo, os peixes eram autênticos colossos e pareceu-me que o canibalismo era a principal fonte de sustento dos peixes maiores. Mas eu era muito jovem, e um pouco fantasioso – não há-de ter sido nada assim.
(Ontem, 24/06, no Jornal de Notícias*)
*As minhas crónicas no JN passam a ser à sexta-feira.
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