Passeio Público
(Cadeia de fatalidade)
Morre-se e sofre-se anonimamente, nos interstícios recônditos dos hospitais ou dos lares, no vago rumor do mundo. As imagens da morte massificada, como as que vimos recentemente no Haiti, são, devido à sua profusão mediática, menos chocantes que a morte do indivíduo próximo, que é relegada para uma zona inatingível de escuridão. As sociedades modernas e assépticas aboliram a morte e o sofrimento públicos – apesar das câmaras de televisão e dos relatos objectivos dos jornais. Resta-lhes o teatro amargo da toxicodependência como eficaz mitografia da ruína: o homem aceita a penumbra, as mães devolvem os filhos ao restolho, o corpo declina no silabário do horror.
A presença da morte na erma constelação da toxicodependência parece insolúvel, e difícil de ocultar. Não precisamos de rever velhos episódios de “Miami Vice” (ou os novos episódios da extraordinária série da HBO “The Wire”, actualmente em exibição no canal MOV) para evocar as tragédias relacionadas com a droga. O inimigo há muito que penetrou as muralhas da cidadela e, apesar de clandestino, não é propriamente invisível.
O fenómeno mediático da toxicodependência recrudesceu em Coimbra. No último mês morreram pelo menos nove pessoas na cidade, possivelmente devido ao consumo de droga adulterada. O número pode até ser maior, se se confirmar a interdependência destas mortes com outras ocorridas em Leiria e Mealhada. Ainda é muito cedo para afirmar definitivamente a causa de tantos óbitos quase simultâneos mas, independentemente dos resultados das autópsias, parece óbvio que a toxicodependência é o mínimo denominador comum desta cadeia de fatalidade.
Apesar da calmaria aparente, o fenómeno da toxicodependência reveste-se de uma gravidade desproporcionada – testemunhada enfaticamente por esta dezena de mortes. Existe, aliás, uma sensação vaga de que a realidade talvez não seja tão indulgente como a temos imaginado: no Bairro do Ingote, por exemplo, tem sido identificada uma “nova vaga” de consumidores, com um perfil distante da imagem paradigmática do toxicodependente desempregado, sem-abrigo e com vários anos de consumo.
(Sexta-feira, 12/02, no Jornal de Notícias)
Morre-se e sofre-se anonimamente, nos interstícios recônditos dos hospitais ou dos lares, no vago rumor do mundo. As imagens da morte massificada, como as que vimos recentemente no Haiti, são, devido à sua profusão mediática, menos chocantes que a morte do indivíduo próximo, que é relegada para uma zona inatingível de escuridão. As sociedades modernas e assépticas aboliram a morte e o sofrimento públicos – apesar das câmaras de televisão e dos relatos objectivos dos jornais. Resta-lhes o teatro amargo da toxicodependência como eficaz mitografia da ruína: o homem aceita a penumbra, as mães devolvem os filhos ao restolho, o corpo declina no silabário do horror.
A presença da morte na erma constelação da toxicodependência parece insolúvel, e difícil de ocultar. Não precisamos de rever velhos episódios de “Miami Vice” (ou os novos episódios da extraordinária série da HBO “The Wire”, actualmente em exibição no canal MOV) para evocar as tragédias relacionadas com a droga. O inimigo há muito que penetrou as muralhas da cidadela e, apesar de clandestino, não é propriamente invisível.
O fenómeno mediático da toxicodependência recrudesceu em Coimbra. No último mês morreram pelo menos nove pessoas na cidade, possivelmente devido ao consumo de droga adulterada. O número pode até ser maior, se se confirmar a interdependência destas mortes com outras ocorridas em Leiria e Mealhada. Ainda é muito cedo para afirmar definitivamente a causa de tantos óbitos quase simultâneos mas, independentemente dos resultados das autópsias, parece óbvio que a toxicodependência é o mínimo denominador comum desta cadeia de fatalidade.
Apesar da calmaria aparente, o fenómeno da toxicodependência reveste-se de uma gravidade desproporcionada – testemunhada enfaticamente por esta dezena de mortes. Existe, aliás, uma sensação vaga de que a realidade talvez não seja tão indulgente como a temos imaginado: no Bairro do Ingote, por exemplo, tem sido identificada uma “nova vaga” de consumidores, com um perfil distante da imagem paradigmática do toxicodependente desempregado, sem-abrigo e com vários anos de consumo.
(Sexta-feira, 12/02, no Jornal de Notícias)
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