Passeio Público
(Cuidados paliativos)
A crise habita-nos, é difícil escapar-lhe, e até comemorar um outro assunto que mereça uma reflexão demorada e dois ou três parágrafos excitados. Abriam os telejornais ainda ontem (ou anteontem) com uma pulhice, de uma sordidez indescritível; nem sequer abriam com o empate do Benfica, mas com o despedimento de 70.000 (setenta mil!) pessoas num único dia, nos Estados Unidos e na Europa.
Coimbra também não escapa ao turbilhão da crise económica mundial. Empresas como a Ceres ou a Real Cerâmica, vertidas em áreas de actividade que se encontram em franca recessão, limitam-se, por enquanto, a sobreviver parca e miseravelmente, tendo como horizonte possível o negrume da insolvência. Mais estranho, de resto, é o caso da Unidade de Saúde de Coimbra (USC), preparada para falir e cuspir para o desemprego cerca de 100 trabalhadores.
Afinal, e aludo ao próprio site da USC, trata-se de uma unidade de saúde vocacionada para a prestação de cuidados continuados e especializados, destinados a pessoas com doença crónica prolongada e/ou incapacitante, com dependência física e funcional ou em risco de perda de autonomia, com uma forte componente de Medicina Física e de Reabilitação.” Logo, uma mina.
A USC foi a primeira unidade do país dedicada aos cuidados continuados, paliativos e ambulatório. Portugal é um país envelhecido e a saúde vem sempre em primeiro lugar. Não se entende, portanto, a situação hesitante da USC. Percebe-se o desconcerto de António Moreira, o coordenador da União dos Sindicatos de Coimbra: “é talvez caso único haver uma unidade de saúde em situação de insolvência". Uma unidade de saúde!, original e revolucionária, modelar: em queda. Arrasada.
A crise habita-nos, coloniza-nos, e fede (impõe a náusea); um dia como o de ontem, ou anteontem, não é apenas um “dia”, é antes de mais, convém não esquecê-lo, o início de uma escala sinistra de “dias” nevoentos. Nem ao menos se avista uma língua de terra firme. Mas talvez isso nem interesse assim tanto: o que importa não é que haja gente esfomeada; afinal, muita gente ainda tem alguma coisa para comer. O António Lobo Antunes condensou bem o desânimo incomensurável da solidariedade.
Perco de vez a confiança na economia, e até em Hermann Broch, o escritor austríaco: “é talvez necessário descer incessantemente às chamas do renascimento”. Estamos fartos de chamas, de destruição, de recomeços inúteis.
(Ontem, 28/01, no Jornal de Notícias)
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