Passeio Público
(Um robô sem coração)
O abandono do descampado. O ensejo em que se dá o irrevogável passo em frente. O instante derradeiro em que se tenta ainda dar um passo atrás, quando a deflagração é já uma evidência a mutilar o corpo. Depois, o corpo é lembrado: quando dói na ausência de um membro, quando verte a soma das partes perdidas. A história podia ser assim, mas é sempre pior. Mesmo as palavras mais terríveis ocultam a marca verdadeira do sofrimento e da violência.
São tantas as minas anti-pessoais dispersas pelo mundo, e tantas as tragédias com que juncam o solo, que quando li acerca de uma máquina de desminagem desenvolvida e construída em Coimbra, na sua universidade (UC), imaginei um pouco de luz por detrás da penumbra.
A máquina (um robô auto-propulsionado) não tem coração mas os seus desígnios são os melhores. A informação que intimamente reúne (um entrançado de «algoritmos de software») e os multíplices detectores de minas (e de outros mecanismos explosivos) que transporta provaram a sua eficácia num campo militar belga, revelando aos longínquos investigadores todas as minas que se resguardavam na negrura da terra.
Um engenho assim desfaz o sorriso indeciso e vago, obriga-nos a esquecer as ruínas por onde nos movemos. Cria sentido – ou melhor, cria uma oportunidade. Um amanhã possível.
Não se entende, por isso, o alheamento do Exército relativamente ao robô anti-minas criado na Faculdade de Ciências e Tecnologia da UC. Não se compreende, por isso, a distância do Exército relativamente a um maquinismo de desfazer memórias numa casa cheia de más recordações.
A investigação está concluída, diz um dos coordenadores do projecto. O robô sem coração – mas paradoxalmente tão humano – está destinado, parece-me, à obscuridade das prateleiras. Escolhemos entre o mal e o esquecimento. A escolha é instintiva e limpa, a omissão é o pecado de eleição no gordo Ocidente. E, contudo, o mal não existe fora de nós.
(Ontem, 11/06, no Jornal de Notícias)
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