Passeio Público
(Anatomia da palavra)
Num incerto momento, Fausto regressa ao seu quarto melancólico, ascético, e abre a Bíblia no início do Evangelho de João. Lê: «No princípio era o Verbo». Eis o mundo, criado a partir da palavra.
Há qualquer coisa de sagrado nas palavras. Um universo de potencialidades desmesuradas, sublimes. A promessa de completar o mundo, de lhe acrescentar existência. Tudo é lento à superfície, menos as palavras que esticam (em parágrafos inteiros) o cinzento esgotado da realidade. Lembro-me de um trecho de Anne Carson, a poeta canadiana, que cito de memória: «Quando uma história acaba há alguns momentos de silêncio. Então as palavras começam outra vez». Lembro-me de como preciso de reconquistar a cadência do fôlego quando acabo de ler um livro, de como a momentânea suspensão da razão é necessária para que a vida possa insistir e continuar de novo.
Eu gosto de palavras e de quem as escreve e inventa, gosto de lhes descobrir significados íntimos. Gosto de livros: repositórios físicos da palavra, do sentido, das existências possíveis. Um livro é uma insolência criativa. Como a reprodução ou a plantação de uma árvore configura um acto radical de criação, de arrogante desafio à aridez da vida normativa.
Implacavelmente, algumas palavras soçobram na vertigem das horas. Uma nova revista, a MACA (Magazine de Arte de Coimbra & Afins), um espaço de divulgação e crítica de diferentes manifestações artísticas e culturais. O livro mais recente de João Rasteiro, «O búzio de Istambul». Uma editora. Mais do que isso, uma comunidade de leitores: a Angelus Novus, estabelecida em 1993 entre Coimbra e Braga, e agora definitivamente instalada na primeira.
A Angelus Novus demandou sempre o caminho mais tortuoso: o da qualidade e da exigência na selecção de títulos e autores. Privilegiando inicialmente a área do ensaio (Derrida, Eduardo Pitta ou Ortega y Gasset) e a edição de autores clássicos portugueses (Fernando Pessoa ou Bernardim Ribeiro), a editora de Coimbra tenciona prolongar o fundamental desse legado e constituir um catálogo literário mais variado, destinado a públicos diversificados.
Numa conjuntura em que a concentração e uniformização editorial fazem doutrina, a Angelus Novus repensa o livro enquanto objecto coleccionável, avultando a qualidade gráfica das suas colecções. A editora procura acautelar o cansaço estético suscitado pela exuberância supérflua de muitos livros que subjugam os escaparates das livrarias.
Destaco alguns livros. A microficção de Augusto Monterroso («A ovelha negra e outras fábulas») e de Rui Manuel Amaral («Caravana»): escrita curta e solar, minimalismo genial. A «crise académica» de 1969, exumada em «A tradição da contestação» de Miguel Cardina, e essa extraordinária narração auto-centrada (quotidiana, agónica, redentora) de Laura Ferreira dos Santos, o «Diário de uma mulher católica a caminho da descrença».
É esta a víscera do afecto que uma editora pode ainda expor numa cidade como Coimbra. Porque o importante é continuar a ler. Para um dia sabermos, como Borges, se fomos uma palavra ou se fomos alguém.
Num incerto momento, Fausto regressa ao seu quarto melancólico, ascético, e abre a Bíblia no início do Evangelho de João. Lê: «No princípio era o Verbo». Eis o mundo, criado a partir da palavra.
Há qualquer coisa de sagrado nas palavras. Um universo de potencialidades desmesuradas, sublimes. A promessa de completar o mundo, de lhe acrescentar existência. Tudo é lento à superfície, menos as palavras que esticam (em parágrafos inteiros) o cinzento esgotado da realidade. Lembro-me de um trecho de Anne Carson, a poeta canadiana, que cito de memória: «Quando uma história acaba há alguns momentos de silêncio. Então as palavras começam outra vez». Lembro-me de como preciso de reconquistar a cadência do fôlego quando acabo de ler um livro, de como a momentânea suspensão da razão é necessária para que a vida possa insistir e continuar de novo.
Eu gosto de palavras e de quem as escreve e inventa, gosto de lhes descobrir significados íntimos. Gosto de livros: repositórios físicos da palavra, do sentido, das existências possíveis. Um livro é uma insolência criativa. Como a reprodução ou a plantação de uma árvore configura um acto radical de criação, de arrogante desafio à aridez da vida normativa.
Implacavelmente, algumas palavras soçobram na vertigem das horas. Uma nova revista, a MACA (Magazine de Arte de Coimbra & Afins), um espaço de divulgação e crítica de diferentes manifestações artísticas e culturais. O livro mais recente de João Rasteiro, «O búzio de Istambul». Uma editora. Mais do que isso, uma comunidade de leitores: a Angelus Novus, estabelecida em 1993 entre Coimbra e Braga, e agora definitivamente instalada na primeira.
A Angelus Novus demandou sempre o caminho mais tortuoso: o da qualidade e da exigência na selecção de títulos e autores. Privilegiando inicialmente a área do ensaio (Derrida, Eduardo Pitta ou Ortega y Gasset) e a edição de autores clássicos portugueses (Fernando Pessoa ou Bernardim Ribeiro), a editora de Coimbra tenciona prolongar o fundamental desse legado e constituir um catálogo literário mais variado, destinado a públicos diversificados.
Numa conjuntura em que a concentração e uniformização editorial fazem doutrina, a Angelus Novus repensa o livro enquanto objecto coleccionável, avultando a qualidade gráfica das suas colecções. A editora procura acautelar o cansaço estético suscitado pela exuberância supérflua de muitos livros que subjugam os escaparates das livrarias.
Destaco alguns livros. A microficção de Augusto Monterroso («A ovelha negra e outras fábulas») e de Rui Manuel Amaral («Caravana»): escrita curta e solar, minimalismo genial. A «crise académica» de 1969, exumada em «A tradição da contestação» de Miguel Cardina, e essa extraordinária narração auto-centrada (quotidiana, agónica, redentora) de Laura Ferreira dos Santos, o «Diário de uma mulher católica a caminho da descrença».
É esta a víscera do afecto que uma editora pode ainda expor numa cidade como Coimbra. Porque o importante é continuar a ler. Para um dia sabermos, como Borges, se fomos uma palavra ou se fomos alguém.
(Ontem, 09/04, no Jornal de Notícias)
Etiquetas: jornais
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