Passeio público
Hoje, no Jornal de Notícias
[Miguel Torga]
A tarde capitulava atrás da Couraça quando entrei naquele consultório adornado de madeiras antigas, discretos biombos e uma janela fronteira aprisionando a última luz do dia. O Mondego, claro, vigiava mansamente do outro lado da estrada. Um homem alto, idoso, pétrea (granítica, melhor dizendo) figura de bata branca, olhou de soslaio o meu receio perante a sua própria grandeza (literária, humana). O que é que eu estava ali a fazer, perguntou, mal disfarçando a rispidez. Mostrei-lhe o livro, branco com título carmesim, se ainda me lembro. O sorriso de Torga abriu-se, o seu olhar apaziguado em fulgores lentos de satisfação. O mito fez-se homem por 30 minutos.
Tanta coisa para dizer isto: tive a sorte de entrançar a minha existência, mesmo que por breves instantes, na vivência de Miguel Torga. Parece pouco (com certeza que é) mas, nesta altura em que se comemora o centenário do nascimento do escritor, este insignificante episódio desperta em mim um sentimento de orgulho nostálgico. De certa forma, recordo-o aqui como forma de tributo póstumo a Miguel Torga.
No dia em que, em Coimbra, se inauguraram monumentos e se afinaram discursos laudatórios, se encenaram peças de teatro e se repetiram óperas apologéticas (a ópera “Bichus”, com texto de Jorge Vaz Nande e encenação de Hélder Wasterlain, numa produção da associação Arte à Parte), passei uma boa parte da tarde a reler os “Diários” de Torga. A maior homenagem que se lhe pode fazer é – e há-de ser sempre – porfiar em ler o que escreveu.
O escritor marginal, insubmisso (realcem-se, por exemplo, as palavras do próprio Torga em “Orfeu Rebelde”: Porque não sei mentir, / Não vos engano: / Nasci subversivo), profundamente hostil ao regime salazarista, avesso às modas e aos “grupos” literários, não teria ficado, por certo, desagradado e magoado com a conspícua ausência de elementos do governo na “sua” homenagem em Coimbra. Miguel Torga possuía um carácter demasiado soberano e independente para se deixar aniquilar por afrontas de personagens de visão exígua e pose afectada.
Miguel Torga não é Berardo. Não vale pelo que tem mas pelo que deu. Foi um homem de enorme cidadania e, hoje, assenta merecida e confortavelmente no cânone literário português. Já o disse: sinto que Torga não ia ficar aborrecido com a desconsideração de Isabel Pires de Lima. Fiquei eu.
[Miguel Torga]
Não hei-de esquecer nunca o fugaz encontro – quase mitológico –, que mantive com Miguel Torga, passam agora, se não me engano muito, dezasseis ou dezassete anos. Apesar de tudo, agora nem sequer consigo evocar todas as circunstâncias e minudências da história mas apenas partes dela, fragmentadas e pouco vívidas. Tremia, isso é certo. O meu ânimo, excitado mas temeroso. O meu professor de Português do 8.º ano, cujo nome infelizmente já não recordo, precavera-me para uma entrevista com um grande escritor e cidadão mas de têmpera arisca e fleumática. Em suma, eu não devia esperar grandes simpatias e mesuras. Mais valia que fosse logo prevenido.
A tarde capitulava atrás da Couraça quando entrei naquele consultório adornado de madeiras antigas, discretos biombos e uma janela fronteira aprisionando a última luz do dia. O Mondego, claro, vigiava mansamente do outro lado da estrada. Um homem alto, idoso, pétrea (granítica, melhor dizendo) figura de bata branca, olhou de soslaio o meu receio perante a sua própria grandeza (literária, humana). O que é que eu estava ali a fazer, perguntou, mal disfarçando a rispidez. Mostrei-lhe o livro, branco com título carmesim, se ainda me lembro. O sorriso de Torga abriu-se, o seu olhar apaziguado em fulgores lentos de satisfação. O mito fez-se homem por 30 minutos.
Tanta coisa para dizer isto: tive a sorte de entrançar a minha existência, mesmo que por breves instantes, na vivência de Miguel Torga. Parece pouco (com certeza que é) mas, nesta altura em que se comemora o centenário do nascimento do escritor, este insignificante episódio desperta em mim um sentimento de orgulho nostálgico. De certa forma, recordo-o aqui como forma de tributo póstumo a Miguel Torga.
No dia em que, em Coimbra, se inauguraram monumentos e se afinaram discursos laudatórios, se encenaram peças de teatro e se repetiram óperas apologéticas (a ópera “Bichus”, com texto de Jorge Vaz Nande e encenação de Hélder Wasterlain, numa produção da associação Arte à Parte), passei uma boa parte da tarde a reler os “Diários” de Torga. A maior homenagem que se lhe pode fazer é – e há-de ser sempre – porfiar em ler o que escreveu.
O escritor marginal, insubmisso (realcem-se, por exemplo, as palavras do próprio Torga em “Orfeu Rebelde”: Porque não sei mentir, / Não vos engano: / Nasci subversivo), profundamente hostil ao regime salazarista, avesso às modas e aos “grupos” literários, não teria ficado, por certo, desagradado e magoado com a conspícua ausência de elementos do governo na “sua” homenagem em Coimbra. Miguel Torga possuía um carácter demasiado soberano e independente para se deixar aniquilar por afrontas de personagens de visão exígua e pose afectada.
Miguel Torga não é Berardo. Não vale pelo que tem mas pelo que deu. Foi um homem de enorme cidadania e, hoje, assenta merecida e confortavelmente no cânone literário português. Já o disse: sinto que Torga não ia ficar aborrecido com a desconsideração de Isabel Pires de Lima. Fiquei eu.
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