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Ontem, no Jornal de Notícias
[O "caso" de Coimbra]
Há pouco mais de dois anos (Março de 2005), a antropóloga Eugénia Cunha, professora catedrática do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, obteve as autorizações da Diocese de Coimbra e da direcção-regional do IPPAR que viabilizavam a realização do projecto científico que ambicionava reconstituir o perfil biológico do Rei fundador da nacionalidade portuguesa, sepultado na Igreja de Santa Cruz em Coimbra. Esse mesmo, D. Afonso Henriques. Cuidou também de angariar o indispensável financiamento para a execução da investigação. Os mecenas que se propunham auxiliar financeiramente este projecto eram privados, não estando, de modo algum, ligados ao Estado.
Eugénia Cunha tornou-se, então, a mentora e guia de um projecto plurinacional onde pontificavam, entre outros, o historiador José Mattoso ou o antropólogo forense Miguel Botella. Este renomado investigador espanhol é o responsável científico, por exemplo, pelo estudo do que se presume serem os restos ósseos do navegador Cristóvão Colombo, sepultado em Sevilha. Nesta inquirição científica seria dado enfoque especial à reconstituição morfológica do primeiro rei de Portugal, assim como à estimativa da sua idade à morte, ao seu perfil genético ou às doenças que o apoquentavam.
A valia científica do projecto era (e é), a todos os níveis, incomensurável. No estudo da História a partir de restos esqueléticos humanos a utopia é admissível: visibilizar o passado, resgatando as memórias fixadas nos ossos que possuem uma relação objectiva, de contiguidade, com a realidade que foi – neles se conserva um vestigium vitae, um resquício de vida.
Não obstante, no próprio dia em que estava prevista a abertura do túmulo (06-07-2006) o Ministério da Cultura e a ministra da tutela, Isabel Pires de Lima, indeferiram o intento da equipa liderada por Eugénia Cunha. Os elementos que constituem a Comissão Científica de aconselhamento da Ministra da Cultura decidiram, em voz única, que os riscos de abrir o túmulo ultrapassam os benefícios que daí decorreriam. Entretanto, a abertura do túmulo de D. Afonso Henriques foi negada mais uma vez, depois da reitoria da Universidade de Coimbra ter enviado à ministra da Cultura uma contra-argumentação ao relatório da Comissão Científica do IGESPAR (organismo que integra os extintos IPPAR e Instituto Português de Arqueologia) com argumentos de natureza técnica, científica e arqueológica que, no juízo da antropóloga, legitimam o projecto.
Sabemos o que sucede quando os argumentos de ordem esotérica, religiosa ou política se interpõem no decurso normal da ciência. Quase sempre há uma rasura consciente do passado. Através dos estudos como o que se propunha fazer Eugénia Cunha há um ciclo que se reitera: os vivos pisam as lousas tumulares e, como escreveu Torga, ligam-se organicamente aos seus mortos. Referenciam-se. Reconhecem-se nos espelhos de pedra que cobrem os antepassados.
* George Orwell. 1997. Recordando a guerra espanhola. Antígona: Lisboa
[O "caso" de Coimbra]
George Orwell, quando escreveu sobre a sua experiência como voluntário na Guerra Civil Espanhola*, achava-se persuadido que a História se apresenta, não poucas vezes, manchada de incorrecções e parcialidade. O que incomodava mais o escritor era, porém, a renúncia da noção de que a História poderia ser fixada com justeza e verdade.
Há pouco mais de dois anos (Março de 2005), a antropóloga Eugénia Cunha, professora catedrática do Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra, obteve as autorizações da Diocese de Coimbra e da direcção-regional do IPPAR que viabilizavam a realização do projecto científico que ambicionava reconstituir o perfil biológico do Rei fundador da nacionalidade portuguesa, sepultado na Igreja de Santa Cruz em Coimbra. Esse mesmo, D. Afonso Henriques. Cuidou também de angariar o indispensável financiamento para a execução da investigação. Os mecenas que se propunham auxiliar financeiramente este projecto eram privados, não estando, de modo algum, ligados ao Estado.
Eugénia Cunha tornou-se, então, a mentora e guia de um projecto plurinacional onde pontificavam, entre outros, o historiador José Mattoso ou o antropólogo forense Miguel Botella. Este renomado investigador espanhol é o responsável científico, por exemplo, pelo estudo do que se presume serem os restos ósseos do navegador Cristóvão Colombo, sepultado em Sevilha. Nesta inquirição científica seria dado enfoque especial à reconstituição morfológica do primeiro rei de Portugal, assim como à estimativa da sua idade à morte, ao seu perfil genético ou às doenças que o apoquentavam.
A valia científica do projecto era (e é), a todos os níveis, incomensurável. No estudo da História a partir de restos esqueléticos humanos a utopia é admissível: visibilizar o passado, resgatando as memórias fixadas nos ossos que possuem uma relação objectiva, de contiguidade, com a realidade que foi – neles se conserva um vestigium vitae, um resquício de vida.
Não obstante, no próprio dia em que estava prevista a abertura do túmulo (06-07-2006) o Ministério da Cultura e a ministra da tutela, Isabel Pires de Lima, indeferiram o intento da equipa liderada por Eugénia Cunha. Os elementos que constituem a Comissão Científica de aconselhamento da Ministra da Cultura decidiram, em voz única, que os riscos de abrir o túmulo ultrapassam os benefícios que daí decorreriam. Entretanto, a abertura do túmulo de D. Afonso Henriques foi negada mais uma vez, depois da reitoria da Universidade de Coimbra ter enviado à ministra da Cultura uma contra-argumentação ao relatório da Comissão Científica do IGESPAR (organismo que integra os extintos IPPAR e Instituto Português de Arqueologia) com argumentos de natureza técnica, científica e arqueológica que, no juízo da antropóloga, legitimam o projecto.
Sabemos o que sucede quando os argumentos de ordem esotérica, religiosa ou política se interpõem no decurso normal da ciência. Quase sempre há uma rasura consciente do passado. Através dos estudos como o que se propunha fazer Eugénia Cunha há um ciclo que se reitera: os vivos pisam as lousas tumulares e, como escreveu Torga, ligam-se organicamente aos seus mortos. Referenciam-se. Reconhecem-se nos espelhos de pedra que cobrem os antepassados.
* George Orwell. 1997. Recordando a guerra espanhola. Antígona: Lisboa
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