Quatro anos, quatro textos
Este homem [digamos, para efeitos práticos, que se chamava Jaime Miguel Barreiros Silvério de Alencar] gostava de sentir a arma nas mãos. Todos os dias, durante 30 anos. Passava as horas em observação pasmada e diletante, porém atenta. O peso equilibrado. As minudências barrocas da coronha. As estrias do cano curto ainda por fumegar. A frialdade do metal. A placidez tonitruante do cromado, sobretudo, provocava-lhe um frémito nos sentidos que, imaginava, ia mais além, muito mais além, que a experiência sexual. Um dia - uma noite, se quisermos ser mais exactos - decidiu ir um pouco mais longe: queria sentir a bala na têmpora direita. A arma perfeita encravou. A bala ficou pela penumbra, nunca deu sombra. Jaime Miguel Barreiros Silvério de Alencar podia agora morrer de desgosto.
O corpo arremessado
Dizer merda e fazer merda não é a mesma coisa. Parece-me mais poético o acto produtivo.
Estéticas da morte #doze
Porque o caminho era escuro havia cuidado. Um dia vieram os da EDP: fizeram buracos onde espetaram postes, assentaram candeeiros onde cravaram lâmpadas [Osram Vialox 150Watt], disseram fiat lux e assim se fez, fez-se luz. No caminho, de muita luz durante as manhãs e primícias das tardes, houve então dia durante toda a noite. E porque o caminho agora era claro não havia tanto, não havia nenhum cuidado. Foi lá, num desses dias nocturnos, que fui assaltado e morto com uma ponta-e-mola daquelas de brincar [pensava eu, antes de vomitar o sangue e abraçar a terra pela penúltima vez].
O salhão
A gaja queria mesmo casar. De véu, grinalda e hímen intacto. E o pai, bêbedo e tudo, a levá-la ao altar. Só faltava um homem que lhe pegasse. Mas pegar aquela dorna – que na balança da estação levava o ponteiro ao encarnado – era empreitada que nenhum Hércules patego considerava e muito menos desejava. E se algum cogitasse a coisa era ouvir-lhe o riso empolado, acometendo as lonjuras. De modo que a tipa deu em prometer mundos [e fundos, mas poucos] ao orago da paróquia, sem que isso lhe trouxesse benefício algum. Alguma compassiva Verónica lá lhe demonstrou, por A mais B, que o melhor era ela deixar as macacadas com o santo e virar-se para as dietas e o exercício. Nobre ideia, pensou o obstinado salhão, faço o exercício [a dieta fica para outra vez], sim senhora, mas metido numa promessa ao santinho. Todos os dias hei-de dar cem voltas ao cruzeiro da igreja com uma cruz de madeira às costas, até que o santo me arranje um homem, continuou. E assim fez, que aquilo não era mulher de arquitectar promessas vãs.
O salho é que não arranjava homem. E um dia que não apareceu na igreja aquela malta não gostou da renúncia. Alguém disse que a tipa ficara na cama, a chorar e a bramir heresias, O santo isto, o santo aquilo, puta que pariu, cona da avó. Um fulano foi buscar gasolina e com ela untaram a cruz de madeira e a casa da gaja. Pegaram fogo à casa [com a bácora lá dentro]. Ardeu bem, a gorda. O corpo estava tão calcinado, tão leve, que foi carregado para o cemitério por dois miúdos que cantavam, Ó santo, lindo como o sol, deixaste esturricar mais um rissol.
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