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13.8.07

Quatro anos, quatro textos

Ficou célebre a elocução de Marx segundo a qual a História, se se repete duas vezes, a primeira é como tragédia e a segunda como comédia. Começou assim, isto do Daedalus. Com a presunção toda: atente-se na "elocução" e no "Marx". O primeiro post deu o mote, o blogue ia ser cabotino e presunçoso. Foi-o muitas vezes. Mesmo muito "à mete nojo". À medida que os meses se sucediam outros azimutes foram tomados: escrita intimista, umbiguista, incompreensível para os demais. Quase sempre fermentada em irrealidades [com i] do que me rodeia. Basciamente escrevi sobre o que me apetecia, o que, por si só, é uma coisa simpática para os meus nervos. Quando escrevemos afugentamos os demónios e os anjos. Ficamos absolutamente sós, reduzidos a ossos brancos e facilmente legíveis. Foram quatro anos. Espero continuar. Dos quatro anos escolhi estes quatro textos como amostra impossível do que escrevi. Dois deles fazem parte de uma etiqueta que muito me apraz: as estéticas da morte [só se pode escrever sobre o amor e a morte, não se esqueçam]. Outro é um pequeno post sobre a merda. E o último é o post mais politicamente incorrecto que alguma vez escrevi. Perdoem o palavreado acrimonioso e preconceituoso. Nada disto é real.
Estéticas da morte #dezoito
Este homem [digamos, para efeitos práticos, que se chamava Jaime Miguel Barreiros Silvério de Alencar] gostava de sentir a arma nas mãos. Todos os dias, durante 30 anos. Passava as horas em observação pasmada e diletante, porém atenta. O peso equilibrado. As minudências barrocas da coronha. As estrias do cano curto ainda por fumegar. A frialdade do metal. A placidez tonitruante do cromado, sobretudo, provocava-lhe um frémito nos sentidos que, imaginava, ia mais além, muito mais além, que a experiência sexual. Um dia - uma noite, se quisermos ser mais exactos - decidiu ir um pouco mais longe: queria sentir a bala na têmpora direita. A arma perfeita encravou. A bala ficou pela penumbra, nunca deu sombra. Jaime Miguel Barreiros Silvério de Alencar podia agora morrer de desgosto.

O corpo arremessado
Dizer merda e fazer merda não é a mesma coisa. Parece-me mais poético o acto produtivo.

Estéticas da morte #doze
Porque o caminho era escuro havia cuidado. Um dia vieram os da EDP: fizeram buracos onde espetaram postes, assentaram candeeiros onde cravaram lâmpadas [Osram Vialox 150Watt], disseram fiat lux e assim se fez, fez-se luz. No caminho, de muita luz durante as manhãs e primícias das tardes, houve então dia durante toda a noite. E porque o caminho agora era claro não havia tanto, não havia nenhum cuidado. Foi lá, num desses dias nocturnos, que fui assaltado e morto com uma ponta-e-mola daquelas de brincar [pensava eu, antes de vomitar o sangue e abraçar a terra pela penúltima vez].

O salhão

A gaja queria mesmo casar. De véu, grinalda e hímen intacto. E o pai, bêbedo e tudo, a levá-la ao altar. Só faltava um homem que lhe pegasse. Mas pegar aquela dorna – que na balança da estação levava o ponteiro ao encarnado – era empreitada que nenhum Hércules patego considerava e muito menos desejava. E se algum cogitasse a coisa era ouvir-lhe o riso empolado, acometendo as lonjuras. De modo que a tipa deu em prometer mundos [e fundos, mas poucos] ao orago da paróquia, sem que isso lhe trouxesse benefício algum. Alguma compassiva Verónica lá lhe demonstrou, por A mais B, que o melhor era ela deixar as macacadas com o santo e virar-se para as dietas e o exercício. Nobre ideia, pensou o obstinado salhão, faço o exercício [a dieta fica para outra vez], sim senhora, mas metido numa promessa ao santinho. Todos os dias hei-de dar cem voltas ao cruzeiro da igreja com uma cruz de madeira às costas, até que o santo me arranje um homem, continuou. E assim fez, que aquilo não era mulher de arquitectar promessas vãs.

O compassado andar da gorda delineava momentos álacres na vivência da igreja. Os miúdos embargavam a catequese nas tardes de sábado para verem aquele mastodonte honrar a costumada via-sacra: a cruz enorme, de pinho velho, enfunada ao alto pela gordura informe dos braços, conduzindo o solene trote da promessa, o amplo vestido de cetim florido ajoujado ao corpo montanhoso, as hossanas embargadas pela voz ondulante, a terra em volta do cruzeiro batida por passos obstinados. Nem a geada relampejando nos campos lhe detinha o fervor. Aos sábados, já disse, os garotos da catequese formavam filas atrás dela e cantavam, Ó santo, lindo como o sol, arranja gajo que coma este rissol. E compareceram homens e mulheres, e rapazes e raparigas, de todas as condições, formando com aquela alma inusitada procissão. Até o padre e o sacristão apareciam, pela nonagésima volta, arrastando o Pater Noster pelo adro da igreja. Um dia, alguém se lembrou de pespegar o santo no andor e juntá-lo ao cortejo. Fez-se. Lá ia ele, no meio da turba, carregado por dois rapazes e duas raparigas, normalmente dois parezinhos que dali corriam para a invisível treva.

O salho é que não arranjava homem. E um dia que não apareceu na igreja aquela malta não gostou da renúncia. Alguém disse que a tipa ficara na cama, a chorar e a bramir heresias, O santo isto, o santo aquilo, puta que pariu, cona da avó. Um fulano foi buscar gasolina e com ela untaram a cruz de madeira e a casa da gaja. Pegaram fogo à casa [com a bácora lá dentro]. Ardeu bem, a gorda. O corpo estava tão calcinado, tão leve, que foi carregado para o cemitério por dois miúdos que cantavam, Ó santo, lindo como o sol, deixaste esturricar mais um rissol.

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