Somos livres: tradição
O afago meigo do vento na minha face atrida reclama as memórias delidas de uma noite distante. Éramos jovens com asas de anjo vingador, guerreiros indómitos com o buço a despontar e a G3 cingida ao corpo, amante engatilhada para o encontro com a morte. Naquele dia vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro, ainda o estertor da noite vinha longínquo, já os vultos camuflados adejavam, silentes, na mata de Cantanhez, esperando conformados a punitiva resposta ao desafio lançado quando entráramos na espessura vegetal.
Foi nesse dia que perdi a audição. De qualquer forma eu já estava habituado ao silêncio. O silvo de uma bala, o último som que terei escutado, talvez a mesma que tocou o Gomes entre os olhos e o norteou para o reverso da vida. Não teria sido diferente se a derradeira audição tivesse sido consagrada a Wagner ou a Chopin, hoje não te poderia ouvir a ti e é isso que lastimo. Quando o furriel Gomes capitulou, a face alva de alentejano [ou minhoto] surpreendida pela bala da “costureirinha”, o seu corpo baqueou mesmo a meu lado. Abracei-me a ele e sussurrei-lhe, desesperançado, sem me ouvir, que ia ficar bem. E lembrei-me do dia em que vim para a Guiné, da minha mãe a rezar em frente de uma fotografia minha vestido de militar. Queria estar junto dela [será preciso dizê-lo?], olhar a sua face empergaminhada, tocar-lhe as mãos quentes. Não estar ali.O sangue quente gotejava nas minhas mãos assassinas, aquele vermelho vívido como um cravo no cano de uma G3, o olhar relapso nos olhos exauridos do Gomes. Percebi que aprendêramos a matar sem que soubéssemos porquê. O guerrilheiro pelo menos sabia porque matava, eu não. Ainda não sei.
Ao longe pressenti o limbo pardacento da tabanca. Deixei o frio subjugar o corpo em jeito de redenção. Olhei à volta, os homens abraçavam-se porque iam voltar para casa. Vivos, que o Gomes voltava entre quatro tábuas de pinho. Alguém escrevinhou num papel gorduroso que os capitães tinham derrubado o governo, o lobo fora caçado. Antes de adormecer, uma lágrima solitária misturou-se com a poeira e o sangue na minha face. Somos livres, a última coisa que ouvi, gritada em uníssono por centenas de vozes. Bem sei que não mas permite-me que esqueça o que te contei antes.
Etiquetas: 25 de Abril, liberdade, ucronia
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