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16.2.04

Boa noite

Aquele rosto sem nome, pétreo e de cor indefinida, avizinhou-se de nós no limbo pardacento do estacionamento e, com a voz limpa e vítrea, ciciou a justa litania de uma vida de desesperança. Falou, discorreu longa e fragorosamente sobre a sucessão ininterrupta de martírios e cruciações que era o filme da sua existência. Drogado, seropositivo e sem-abrigo, emblemas maiores de um self esgarçado pela miséria e pela mentira. Mais vale sancionar esta como verdade e esquecer para continuar. Tenho a certeza que a sua vida era bem pior que aquela descrição esforçada. Sei que existem formas de padecimento intransponíveis para uma configuração falada, verbalizada. Como pode o frio ser traduzido numa palavra, numa frase? É preciso senti-lo. Deixá-lo subjugar o corpo. Lembrámo-nos, “É a segunda vez que nos enganam desde que chegámos”. E isso não pesou na nossa decisão, não podia pesar quando o desvelo, o empenho no discurso era tão evidente. Nem na miséria existe igualdade e decidi, talvez plutocrata e nada cristãmente, que aquele seria recompensado. Pelo esforço.