Primária
Eu era quase sempre o último a chegar ao recreio, por volta das 8:30h. Depunha a minha mochila no fim da fila encarreirada e juntava-me à malta que dava uns toques na bola de serapilheira, que a de couro, essa, só via a luz do sol em dia santo. Naquela manhã, porém, não se ouvia a chiadeira “passa a bola que eu finto todos e marco golo” no pátio deserto, os dois plátanos a fazerem companhia um ao outro. No dia claro, início do Verão, a miudagem que normalmente estaria no pátio a jogar à bola ou a saltar à corda, rumava aos magotes ao ribeiro para ver o espectáculo gratuito da morte. Mesmo ao longe pressenti a cena: a cadela, duas ou três crias aninhadas no ventre bojudo e semi-aberto e a lapuzada curiosa a berrar e a chorar enquanto a Dona Maria Luísa, professora daqueles quatro anos inesquecíveis, tentava em vão apartá-los dali. Pus-me a correr para lá, ansioso, o voyerismo a palpitar apressadamente nas minhas veias, o medo jugulando o meu passo de criança. Porra, o palco regurgitava espectáculo bárbaro. Foi duro ver os cãezinhos a putrificar, no ribeiro quase seco junto à escola. Os meus sete anos não aguentaram aquele cheiro a podre e os bichos larvares remexendo-se nos olhos dos caninos extintos. Aliei-me incondicionalmente ao coro que carpia aqueles inocentes. Nunca como quando se é criança se é tão vulnerável à possibilidade da morte, e agora sei que é mais difícil morrer quando somos crianças. Cheguei a casa, almocei, corri para o meu avô: “Enterra os cãezinhos avô, e depois dizemos uma oração”.
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