Melancolia de pássaros
O andorinhão, pássaro insectívoro, caçador breve de moscas e melgas (alimento apenas comestível), possui um sistema de orientação evoluído, quase irrepreensível, que lhe permite, por exemplo, contornar borrasqueiros e tempestades. Raramente se apeia do conforto do vento e fá-lo apenas para nidificar (para doar vida) ou para morrer. O andorinhão dorme em voo absoluto. It sleeps in the wings, como dizem os ingleses. Não sei como o faz, ou porque o faz – talvez se sinta mais seguro arredado da terra, das suas misérias e dos seus parasitas.
Foi ontem (não foi) que encontrei um andorinhão (um milhafre pequeno, pensei) na Reserva do Museu Antropológico da Universidade de Coimbra – Secção das Colecções Esqueléticas Identificadas. Esboçava um voo indefeso e tremelicado, destinado ao chão, não sem antes acometer, com alguma violência, os armários que protegem os crânios de homens e mulheres de segunda morte (são 2000? 3000?). Percebi-lhe a aflição do náufrago, do tresmalhado, peguei-lhe com água de matar a sede e outras delicadezas, mas em vão: ele partira já. Julgo que morreu imediatamente, no momento em que tocou o solo, quando vislumbrou a morte reflectida nas vidraças dos armários e percebeu que era da natureza dele viver só a voar. O resto, aquele bater de asas hesitante, foi apenas um derradeiro paroxismo ou, talvez, uma forma de agradecer a quem o criou assim.
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