Passeio Público
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O romance da ortodoxia não é intrinsecamente mau – há coisas que não se querem mudadas, como o sabor do bacalhau seco ao sol; afinal, a estase da tradição configura uma espécie de democracia dos mortos – mas não deve ser lido até às últimas consequências. O corolário é intuitivo: muda-se o que está mal, o que nos faz mal.
Coimbra habita na linguagem e, entre cortejos e serenatas, exalta e cumpre-se diariamente naqueloutra palavra: “tradição”. Há palavras que se agarram às cidades, como a lapa se fixa à rocha. Antiga e monumental, é cidade necessariamente conservadora – apesar dos estudantes, da “Geração de 70”, da “Presença” ou de 1969. Coimbra poderia ter-se detido perante o rumo inflexível do progresso (a todo o preço), mas por uma vez isso não aconteceu: os habitantes e os amigos da cidade contestaram o novo viaduto do IC2, projectado para passar sobre uma parte do Choupal, e, depois do grande murmúrio de protesto, surge o anúncio de alteração do traçado da rodovia - que irá contornar a mata, ao invés de a espezinhar.
Noutros campos, a imobilidade e a satisfação comezinha são para manter. Infelizmente. Não há força, ou sequer vontade, de mudar uma cidade sem dinâmica económica, com um centro histórico esquecido e degradado, com problemas nos transportes e habitação. Os problemas da cidade foram elencados de forma exaustiva pelos candidatos à Câmara Municipal de Coimbra, num debate realizado no Teatro da Cerca de São Bernardo. A percepção com que ficaram os potenciais eleitores presentes é a de que os mandatos de Carlos Encarnação se pautaram pela inacção, pela apatia e pela desorganização.
De facto, pouco foi feito pela cidade nos últimos anos. Não sei se a culpa é de José Sócrates que, segundo o edil conimbricense, execra Coimbra. O que eu sei é que é muito fácil sacudir a água do capote e culpar os outros pelos nossos próprios erros. O povo de Coimbra condescende. Mas se é certo que o criminoso deve ser absolvido até setenta vezes sete, o crime não deve ser perdoado uma única vez.
(Hoje, 09/10, no Jornal de Notícias)
Etiquetas: Coimbra, democracia, jornais
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