Passeio público
Deve ter sido sempre assim. Pelo menos desde que a humanidade se desembaraçou dos pêlos, da locomoção quadrúpede e das limitações cognitivas da sua parentela simiesca. Não houve, de então para cá, uma reforma profunda na nossa mentalidade. Os homens sempre gostaram de dividir o mundo e, partindo de diferenças reais ou imaginárias, fraccionaram-no em regiões, províncias e territórios.
Desta tendência humana para a decomposição espacial surge o nosso país. Portugal é pequeno, ao contrário do que indiciava o fabulado mapa do “Império Colonial Português”, ampliado à força e a expensas de Angola, Moçambique ou Timor. Pequeno e (já adivinharam) dividido. Lisboa e o resto. Norte, Centro e Sul. Interior e Litoral.
A divergência social e económica dos diferentes territórios do país evoca uma assimétrica manta de retalhos. Na década de 1960 a emigração esquartejou a face interior do país, eviscerou-o, no sinistro culminar de anos de disparidades e injustiças sociais. Aldeias inteiras deslocalizaram-se para os “bidonvilles” de Paris. O abatimento demográfico, o envelhecimento, a falta de emprego e o encerramento de centros de saúde, maternidades e escolas enformam actualmente uma certa identidade do que é ser “interior”.
Há pouco tempo, perto de Odemira, julguei que passeava pelo “interior profundo” do país. Aldeias quase abandonadas e habitantes envelhecidos ilustravam um postal desvanecido. A quatro ou cinco quilómetros de distância, as belas arribas da Costa Vicentina e o mar. Acho que percebem o que quero dizer: o interior não pode continuar a ser reduzido a uma mera oposição geográfica do litoral. Será Madrid uma cidade afectada pelo peso da “interioridade”, pela distância que a aparta do litoral? Claro que não. Ser “interior”, mais do que um afastamento do mar, implica uma condição de periferia e margem, uma separação (não necessariamente física) dos fulcros e vínculos de desenvolvimento e uma rarefacção relacional.
Face às noções expostas, talvez seja legítimo considerar o abandono e a prostração social e comercial da Baixa de Coimbra como um sinal de interioridade. Ou encarar o encerramento das urgências do Hospital de Anadia como um afastamento simbólico da cidade bairradina relativamente ao litoral. Talvez seja importante percebermos que o “interior” pode encontrar-se em qualquer lado, até à beira-mar.
O interior não é uma entidade unidimensional, que trespassa fisicamente o país de Bragança a Vila Real de Santo António. O interior, enquanto margem de fragilidade social e económica, insinua-se cada vez mais na orla e até no centro das grandes cidades do litoral. As metástases do conceito afastam-se do território geográfico de origem.
(Ontem, 12/03, no Jornal de Notícias)
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