Passeio público
Quarta-feira, 12/11, no Jornal de Notícias
Julgo que Plotino não exprimiu bem as suas ideias e percepções do mundo quando disse que os homens estão a meio caminho entre os deuses e os animais. Eu acho que estamos bem mais perto destes. Apesar do fausto cultural e dos milénios de aprendizagem social a humanidade continua presa aos instintos mais básicos. Que ninguém se julgue eximido ou livre dos sentimentos mais pristinos e anacrónicos, aqueles que fluem do córtex reptiliano. Somos um macaco nu, mas não deixamos de ser um macaco.
Apercebo-me distintamente disto quando observo as pessoas (e a mim mesmo) e certifico a incomensurabilidade do abismo que muitas vezes as separa. Os brancos dos negros, os cristãos dos muçulmanos, os gordos dos magros, os beirões dos alentejanos. Simples divisões dicotómicas que relevam as fobias em relação ao que é diferente, ao "Outro" diverso de nós mesmos.
Vem isto a propósito da exposição "Meninos Gordos contar uma história através da faiança" que pode ser vista até 14 de Dezembro no Museu Antropológico da Universidade de Coimbra. Nesta mostra ficamos a conhecer parte da história de dois irmãos, Ana e Mateus, nascidos no Piemonte italiano na primeira metade do séc. XIX. Mas qual o potencial de interesse nestes dois irmãos, especificamente? Ana e Mateus eram muito mais altos e gordos que quaisquer crianças da sua idade. E, cito o prospecto que me foi fornecido no local da exposição, "por serem diferentes, converteram-se (...) no alvo da curiosidade e assombro de reis, príncipes e populações que os admiraram nalgumas importantes cidades europeias."
A ideia de exibir a diferença (o que era anormal) inscrita nos corpos era comum na época: recordemos os "freak shows" ou o circo do americano P.T Barnum que percorriam as cidades americanas e europeias mostrando toda a espécie de "erros da natureza", humanos ou animais.A verdade é que toda a diferença é castigada. A instintiva paisagem sugere-nos os corpos de indefinição repetida, disformes, grotescos e volumosos - para além das proporções toleradas. O gordo, o badocha, o rechonchudo objecto de admiração e espanto. Mas ao espanto e à admiração temos forçosamente que acrescentar o escárnio e a zombaria. A exibição da diferença balanceava certamente entre estes sentimentos e, no fundo, impunham a hegemonia da norma.
A normopatia, a preocupação em circunscrever as formas, as cores ou os comportamentos ao que é de regra, é, ainda hoje, uma das grandes preocupações dos indivíduos, dos estados e mesmo das entidades supranacionais, como a União Europeia, que nos impõe hábitos comportamentais "normalizados". Pretende-se eliminar a diferença. Só por isso, porque é "diferente". Infelizmente não há sequer um retrocesso. O animal esteve sempre dentro de nós. Não se esqueçam, ele dorme mas não está morto. Alijemo-nos do fardo do inumano e busquemos mais além a centelha que nos faz humanos.
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