Romãs
Rapace experimentado, lobo carcomido por fome ancestral, Fernando consumia os tempos livres pelos pomares da aldeia a usurpar a fruta da época, fielmente assistido, de cesta à cabeça, pelo Faustino, seu compadre de malfeitorias e miolo pensante das manobras de furto.
O primeiro fulgir do sol pilhou o Fernando alcandorado no ramo mais próximo de Deus da romãzeira do Quintas. Com a sagacidade de um Moisés, separava rápida e metodicamente as romãs sazonadas das verdes e, com a habilidade de um Kareem Abdul-Jabar, perfazia um gancho largo com as primeiras que, depois de um voo espaçado, se aquietavam docilmente na frouxa cesta de vime que Faustino conduzia no solo do horto. Velozmente encheram a cesta naquela manhã chocarreira.
Com o volume à cabeça o Faustino parecia um peregrino jornadeando para Fátima, oprimido pelo peso dos pecados e do pão e vianda para a mantença do estômago. Através de caminhos laterais, esconsos, galgaram mundo até uma pequena mata de eucalipto, na cercadura da aldeia, onde iriam repartir os frutos – literalmente – da empreitada. Ao deporem o cesto no chão, as cabecitas cambaleantes pelo abalo, contemplaram, com incontida raiva, a vacuidade do repositório de verga, despojado das romãs e engalanado com vastíssimo rombo. A ventura do roubo tornara-os momentaneamente negligentes, a jactância do sucesso cozeu-lhe tanta adrenalina que os dois tratantes nem se aperceberam que, à medida que caminhavam, iam perdendo a fruta pelo buraco do depósito entrançado de vime.
-Deita essa merda aos porcos! – berrou o Faustino, referindo-se ao vime entretecido em forma de cesto.
O Quintas andava inchado que nem um pêro, a arca pejada de carne de porco, salgada ou fumada. Quando topou que lhe roubaram a sacra romãzeira (e se lhe roubavam a fruta, daí a pouco alguém dava-se ares de lhe pilhar a Rosalinda, a filha mais velha) seguiu como um perdigueiro o rasto dos pomos tombados até atinar com o objecto de transporte em conciliábulo com os porcos do Travessas. Correu a casa, pegou o machado e desfez a cachola rósea de dois suínos. Depois, correu atrás do Travessas para lhe fazer o mesmo, angustiado pelo amigo lhe ter saído um larápio de monta. O Travessas, bradando a sua inocência e apelando misericórdia, como derradeiro recurso para se safar de prestar contas ao Criador oblatou os porcos executados ao Quintas. Ainda hoje, com 87 anos, é conhecido por esses povos como o Travessas das Romãs.
O primeiro fulgir do sol pilhou o Fernando alcandorado no ramo mais próximo de Deus da romãzeira do Quintas. Com a sagacidade de um Moisés, separava rápida e metodicamente as romãs sazonadas das verdes e, com a habilidade de um Kareem Abdul-Jabar, perfazia um gancho largo com as primeiras que, depois de um voo espaçado, se aquietavam docilmente na frouxa cesta de vime que Faustino conduzia no solo do horto. Velozmente encheram a cesta naquela manhã chocarreira.
Com o volume à cabeça o Faustino parecia um peregrino jornadeando para Fátima, oprimido pelo peso dos pecados e do pão e vianda para a mantença do estômago. Através de caminhos laterais, esconsos, galgaram mundo até uma pequena mata de eucalipto, na cercadura da aldeia, onde iriam repartir os frutos – literalmente – da empreitada. Ao deporem o cesto no chão, as cabecitas cambaleantes pelo abalo, contemplaram, com incontida raiva, a vacuidade do repositório de verga, despojado das romãs e engalanado com vastíssimo rombo. A ventura do roubo tornara-os momentaneamente negligentes, a jactância do sucesso cozeu-lhe tanta adrenalina que os dois tratantes nem se aperceberam que, à medida que caminhavam, iam perdendo a fruta pelo buraco do depósito entrançado de vime.
-Deita essa merda aos porcos! – berrou o Faustino, referindo-se ao vime entretecido em forma de cesto.
O Quintas andava inchado que nem um pêro, a arca pejada de carne de porco, salgada ou fumada. Quando topou que lhe roubaram a sacra romãzeira (e se lhe roubavam a fruta, daí a pouco alguém dava-se ares de lhe pilhar a Rosalinda, a filha mais velha) seguiu como um perdigueiro o rasto dos pomos tombados até atinar com o objecto de transporte em conciliábulo com os porcos do Travessas. Correu a casa, pegou o machado e desfez a cachola rósea de dois suínos. Depois, correu atrás do Travessas para lhe fazer o mesmo, angustiado pelo amigo lhe ter saído um larápio de monta. O Travessas, bradando a sua inocência e apelando misericórdia, como derradeiro recurso para se safar de prestar contas ao Criador oblatou os porcos executados ao Quintas. Ainda hoje, com 87 anos, é conhecido por esses povos como o Travessas das Romãs.
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