O que é um herói?
Não hei-de negar três vezes, como Simão Pedro negou conhecer Cristo antes do galo reboar o seu infausto cacarejo na noite silente, que quando pensava nos campos de extermínio de Auschwitz ou Bergen-Belsen quase nunca incorporava o martírio do homem e mulher judeus – no sentido estrito do termo incorporar, isto é, cogitando o tormento sofrido no meu próprio corpo. Na realidade, imaginava os horrores dos campos de extermínio em massa como o período terrível e obsceno que mediava a chegada do herói redentor – eu – paramentado com a estrela vermelha sobre o caqui do boné de feltro ou com a star spangled banner cosida na manga da jaqueta militar. O topo triunfal de um tanque de guerra aprimorava o cliché.
Eu não tinha mais que doze ou treze anos quando me apaixonei por uma judia alemã [talvez não seja despiciendo contar que, uns meses antes ou depois, o meu enamoramento recairia sobre outra alemã atormentada: Christiane Vera F., a “filha da droga”] que contou a tragédia da sua narrativa pessoal – em que o sofrimento do indivíduo Anne Frank acaba por simbolizar a desventura de um povo inteiro – num diário que revelava as minudências do dia-a-dia num valhacouto cerceado de dignidade e espaço na Amesterdão ocupada. Foi talvez o meu primeiro contacto com a face judaica da 2ª Guerra Mundial. Experimentei pela primeira vez o apelo do herói: enquanto lia, sonhava resgatar a doce Anne das garras dos repulsivos nazis.
Com o dobar dos anos a invocação ao semideus redentor não esmoreceu – continuo a querer salvar Primo Levi e Anne, no poleiro de um fero Sherman ou na poderosa Katyusha, em leituras mediadas por mais de dez anos. Mas, antes de me imaginar protagonista de uma libertação espaventosa, cerro os olhos e tento sentir no último pelo da mais longínqua parte do meu corpo o menor dos sofrimentos daqueles heróis que morreram nos ou sobreviveram aos campos da morte nazis. A tessitura de neurónios alonga-se na imaginação mas aquela dor é intangível, o espírito derroga o horror dos campos lamacentos da Polónia. Não consigo sentir a desesperança, a humilhação, o terror, a aproximação certa da morte. Os verdadeiros heróis foram os que viram os tanques chegar e os que morreram na esperança de os ver um dia.
Adenda: Outro herói, da escrita, é o Nuno Guerreiro. Muitos parabéns pelos 365 de alta cultura e sensibilidade no Rua da Judiaria.
Eu não tinha mais que doze ou treze anos quando me apaixonei por uma judia alemã [talvez não seja despiciendo contar que, uns meses antes ou depois, o meu enamoramento recairia sobre outra alemã atormentada: Christiane Vera F., a “filha da droga”] que contou a tragédia da sua narrativa pessoal – em que o sofrimento do indivíduo Anne Frank acaba por simbolizar a desventura de um povo inteiro – num diário que revelava as minudências do dia-a-dia num valhacouto cerceado de dignidade e espaço na Amesterdão ocupada. Foi talvez o meu primeiro contacto com a face judaica da 2ª Guerra Mundial. Experimentei pela primeira vez o apelo do herói: enquanto lia, sonhava resgatar a doce Anne das garras dos repulsivos nazis.
Com o dobar dos anos a invocação ao semideus redentor não esmoreceu – continuo a querer salvar Primo Levi e Anne, no poleiro de um fero Sherman ou na poderosa Katyusha, em leituras mediadas por mais de dez anos. Mas, antes de me imaginar protagonista de uma libertação espaventosa, cerro os olhos e tento sentir no último pelo da mais longínqua parte do meu corpo o menor dos sofrimentos daqueles heróis que morreram nos ou sobreviveram aos campos da morte nazis. A tessitura de neurónios alonga-se na imaginação mas aquela dor é intangível, o espírito derroga o horror dos campos lamacentos da Polónia. Não consigo sentir a desesperança, a humilhação, o terror, a aproximação certa da morte. Os verdadeiros heróis foram os que viram os tanques chegar e os que morreram na esperança de os ver um dia.
Adenda: Outro herói, da escrita, é o Nuno Guerreiro. Muitos parabéns pelos 365 de alta cultura e sensibilidade no Rua da Judiaria.
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