Passeio Público
(Crianças e monstros)
As doutrinas divergem mas, de um modo geral, as religiões determinam que toda a humanidade se evade do útero primordial com o estigma da culpa ou com a integridade da “tabula rasa”. O tema é tão embaraçoso que até a ciência frequentou, mais tempo do que seria necessário, a questiúncula estéril da “nature vs. nurture”, algo que dificilmente se traduz como a oposição entre o papel da natureza (i.e., dos genes) e da “enculturação” no desenvolvimento das nossas características individuais e sociais. Mais prosaicamente: agimos de certa forma porque os nossos genes assim o determinam ou, ao invés, mantemos determinado comportamento porque somos ensinados a fazê-lo.
Na realidade, a nossa conduta é decidida tanto pelo nosso património genético, como pelas formas de socialização e enculturação a que estamos sujeitos – com um iniludível ascendente das determinantes sociais e culturais. Dessa forma, qualquer comportamento desviante ou patológico será, em teoria, a consequência de um reticulado multíplice de agentes, entre os quais se relevam os factores ambientais, culturais e sociais (como as relações familiares, a escolaridade ou a situação económica).
Às concepções sobre o comportamento humano perdoam-se as lacunas e omissões – o comportamento humano é demasiado complexo e variável para ser inteiramente apreendido. Contudo, a frustração alimenta-se do espanto perante o mal que nos é próximo: no final do mês de Março, uma criança contou em casa que era alvo de abusos sexuais cometidos por um colega, na Escola EB1 de Formoselha (Montemor-o-Velho). O alegado abusador tem nove anos. O desconforto recrudesce perante o perfil do pretenso abusador, tão longínquo do aconchego do arquétipo dos “monstros”.
Tudo isto pode ser um equívoco das crianças que acusam o colega (um engano inocente). Mas, e se não for? Estou longe de chegar a uma resposta. Sei apenas que não há monstros e que, se os houver, não têm, com certeza, apenas nove anos.
(Ontem, 22/04, no Jornal de Notícias)
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