Passeio Público
(O todo pela parte)
Algum tempo depois das escaramuças na Quinta da Fonte, em Loures, o Planalto do Ingote, em Coimbra, foi passado a tiro por uma dúzia de homens. Sem vítimas a lamentar, remanesce o terror entre os moradores dos bairros da Rosa, do Ingote e António Sérgio. Não é possível colocar uma pedra sobre o assunto. Uma espécie de efeito dominó impele a comunidade cigana para os informes dos jornais – e não pelas melhores razões.
O Planalto do Ingote é uma paisagem de atrito. De conflitos e pendências reiterados. A culpa é da droga, dos ciganos (o todo étnico que expia as faltas da parte) e da complacência policial, dizem alguns. O medo é, desde há 20 anos, um dos sentimentos favoritos dos habitantes. Um residente queixava-se ao JN (06/08/2008) que o clima de terror lhe coarcta a liberdade: não pensa sequer em sair de casa à noite. Um amigo, habitante do Bairro António Sérgio, conta-me que, quando andava na escola primária, era assaltado quase todos os dias.
São os factos que criam a realidade. O Planalto do Ingote enferma de um grave problema de segurança e frágil integração de uma comunidade minoritária – não há como negar a evidência. A possibilidade salvífica encontra-se, não em “sociologias de desculpabilização” ou em medidas repressivas extremas (dignas de um estado policial), mas na contemplação de possibilidades alternativas de coabitação (veja-se o bem sucedido caso do Parque Nómada nos campos do Bolão), na não discriminação da população cigana no acesso ao emprego a nível local, na continuidade de iniciativas como o projecto “Planalto Seguro” e, sobretudo, na promoção do mútuo conhecimento entre comunidades.
De facto, quantas pessoas sabem que os ciganos têm a sua origem, enquanto grupo étnico, no norte da Índia? Que a diáspora do povo “romani” persevera há mil anos? Que chegaram a Portugal durante o séc. XV?
É conhecido o temor que inspira o nomadismo, a impermanência: os ciganos, os tártaros mongóis, os mucubais angolanos, todos são (ou foram) olhados com desconfiança pelos povos sedentários. As normas que determinam o semblante da nossa sociedade não se conformam com visões alternativas das coisas. Toda a diferença é punida, quase sempre anima o medo e a rejeição, o primitivo e animal em nós.
É esta ancestral desconfiança que ainda hoje orquestra as relações entre comunidades. A impermanência ainda rima com impertinência.
(Ontem, 13/08, no Jornal de Notícias)
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