Passeio Público
(A procissão da Rainha Santa)
As peregrinações são assuntos de caminhos e estradas, de aurora e lusco-fusco, cheiro a raposinho e banhos circunstanciais. São argumentos que se desenvolvem sobretudo entre a partida e a chegada. É a viagem e as suas façanhas que aliciam o peregrino, que o motivam para além do destino final da jornada.
As procissões são mais curtas. O destino é o mesmo. A promessa paga, o favor retribuído. O pacto místico de uma mulher, de um homem e de um deus (ou de um seu intermediário) que existe por eles. Os segredos inconfessados, o mistério da súplica.
Nas duas procissões da Rainha Santa, que se cumpriram na Quinta-feira e Domingo passados, milhares de pessoas (cerca de 150.000, de acordo com a Polícia) negociaram a sua fé (e os seus anseios, os seus medos, as suas exultações, as suas vitórias) com Isabel, santa e rainha. Milhares de indivíduos mesmerizados em volta de um andor de rosas e cravos brancos, conduzido com vagar e rigor por dez homens da confraria da Rainha Santa, e das graças concedidas por intermédio da virtuosa Isabel que o encima.
A procissão é um palco do real: do sal vergado do choro, dos joelhos nus sobre o chão cansado, das pétalas de flores voluteando sobre a Ponte de Santa Clara, das bocas que falam e que, como Jeremias, revelam cinco lamentos. Ao longe, as silhuetas sustentam o insucesso de cada existência incompleta e incumprida. É perceptível uma resignação consciente face ao mundo, face à “ordem natural”, pré-consumada, que amarra e submete cada biografia às disposições formulaicas dos deuses. Apesar disso, um rosto de superioridade não forçada, de orgulho ingénito, encima inexplicavelmente as figuras de prece.
O sacrifício é a marca da fé. Ouço alguém (talvez uma senhora idosa) dizer que só o sofrimento diferencia aqueles que merecem estar na procissão. A dor é a única redenção possível. Eu acho que não. O riso das crianças vestidas de anjo desmistifica o discurso moral da penitência e da sisudez.
A noite contígua, a fluidez esmaecida da luz junto ao Convento de Santa Clara, falsifica a autoridade mística do momento em que a imagem de Isabel, a Rainha Santa, regressa enfim ao absidíolo da igreja. A festa termina mas o sofrimento (e o riso das crianças) continua.
(Ontem, 15/07, no Jornal de Notícias)
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