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7.1.08

Continuei a olhar a tarde

Deixei que a escuridão me tomasse o olhar. Esperei que a imagem no espelho recuperasse o tempo próprio dos gestos que eu simulava do outro lado do quarto (coisa mais estranha, um espelho assíncrono, pensei). Todavia, tinha sido engraçado, e até estimulante, verificar como os meus gestos eram lentos (e eu queria que fossem rápidos), tornados ainda mais lentos pelo desfasamento entre o momento em que eram executados e o posterior momento em que, tal como num filme, os via naquele espelho pousado na parede, do outro lado do quarto.

A dada altura, não sei muito bem quando, os meus gestos tornaram-se, de facto, concomitantes (aquém e além do espelho), aprisionados em reflexões fugazes e animadas pelo meu movimento contínuo. Foi nessa altura que peguei no revólver e despachei o assunto. Dei um tiro no meu próprio reflexo, no sítio onde era suposto estar o coração (a sua imagem reflectida, pensei mal, a imagem reflectida de um pullover azul sob o qual deveria estar: pele, costelas, músculos, pulmões e, talvez, um coração, pensei melhor). Os vidros estilhaçados (que agora repousam no caixote do lixo da cozinha) são a prova de uma tentativa de assassinato (e não de suicídio). Tentativa, digo bem: ainda aqui estou, vivo e castigado pelo cinto do meu pai. O espelho era novo, vou ter que pagá-lo com a minha mesada.

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