Passeio Publico
(Uma festa)
Embora tenham passado alguns anos, não sei bem quantos, recordo facilmente aquele fim de tarde – o calor de Julho parecia já um gládio castigador sobre os corpos dos penitentes. Um momento de trânsito parado, denso e taciturno; as constantes paragens permitindo um olhar mais atento ao ramerrame da cidade definitivamente alterado pelo ciclo religioso das festas da Rainha Santa.
Perto do rio, uma jovem (talvez bonita e bem vestida) atravessou a estrada, altiva, como guarda de honra de uma velhota de face empergaminhada, de negro trajar, suspirando os passos lentos de joelhos, talvez percorrendo o longo caminho que se intromete entre a Igreja da Graça e o Convento de Santa Clara-a-Nova. Aquelas pernas antigas nutriam-se do alcatrão, cansadas e à procura de auxílio – da neta, de Deus, da Santa que também era rainha (alguém me ajude a decidir). O secreto desígnio da senhora, temo dizê-lo, permaneceu oculto.
A imagem paradoxal daquela tarde decídua de Julho eternizou-se em mim, como se fosse o ponto de partida para qualquer coisa indecidida, desconexa e absurda. O que é certo é que reflecti um pouco sobre aquilo que vi e não cheguei a uma conclusão ou máxima moral - boa ou má. Nada aflorou daquela experiência empírica.
Na verdade, aquele passo das festas da cidade de Coimbra direccionou o meu pensamento para outras festas: as dos “santos populares” (no Porto, em Lisboa, em Braga, etc.). As sardinhas, as marchas e os martelos de plástico são malquistos em Coimbra; os santos do povo são demasiado “vulgares” (mas não nos Olivais). Nos seus arremedos de dama afidalgada, nas suas extravagâncias decadentistas, Coimbra desejou uma santa da nobreza – “preferível” aos outros santos, portanto.
Teve-a, sabemo-lo bem. Isabel de Aragão, filha, esposa e mãe de reis. Falando a sério: nem melhor, nem pior. Apenas diferente. Menos festiva, mais devota. Popular, certamente – daquele povo imenso de joelhos cansando o solo e de anjinhos adejando na ponte. Afinal, apenas uma festa. De uma cidade como as outras. Nem melhor, nem pior: diferente.
(Ontem, 02/07, no Jornal de Noticias)
Embora tenham passado alguns anos, não sei bem quantos, recordo facilmente aquele fim de tarde – o calor de Julho parecia já um gládio castigador sobre os corpos dos penitentes. Um momento de trânsito parado, denso e taciturno; as constantes paragens permitindo um olhar mais atento ao ramerrame da cidade definitivamente alterado pelo ciclo religioso das festas da Rainha Santa.
Perto do rio, uma jovem (talvez bonita e bem vestida) atravessou a estrada, altiva, como guarda de honra de uma velhota de face empergaminhada, de negro trajar, suspirando os passos lentos de joelhos, talvez percorrendo o longo caminho que se intromete entre a Igreja da Graça e o Convento de Santa Clara-a-Nova. Aquelas pernas antigas nutriam-se do alcatrão, cansadas e à procura de auxílio – da neta, de Deus, da Santa que também era rainha (alguém me ajude a decidir). O secreto desígnio da senhora, temo dizê-lo, permaneceu oculto.
A imagem paradoxal daquela tarde decídua de Julho eternizou-se em mim, como se fosse o ponto de partida para qualquer coisa indecidida, desconexa e absurda. O que é certo é que reflecti um pouco sobre aquilo que vi e não cheguei a uma conclusão ou máxima moral - boa ou má. Nada aflorou daquela experiência empírica.
Na verdade, aquele passo das festas da cidade de Coimbra direccionou o meu pensamento para outras festas: as dos “santos populares” (no Porto, em Lisboa, em Braga, etc.). As sardinhas, as marchas e os martelos de plástico são malquistos em Coimbra; os santos do povo são demasiado “vulgares” (mas não nos Olivais). Nos seus arremedos de dama afidalgada, nas suas extravagâncias decadentistas, Coimbra desejou uma santa da nobreza – “preferível” aos outros santos, portanto.
Teve-a, sabemo-lo bem. Isabel de Aragão, filha, esposa e mãe de reis. Falando a sério: nem melhor, nem pior. Apenas diferente. Menos festiva, mais devota. Popular, certamente – daquele povo imenso de joelhos cansando o solo e de anjinhos adejando na ponte. Afinal, apenas uma festa. De uma cidade como as outras. Nem melhor, nem pior: diferente.
(Ontem, 02/07, no Jornal de Noticias)
Etiquetas: jornais
<< Home