Passeio Público
(Uma sombra de outra sombra)
Nas ruas da cidade, desde os Arcos à Portagem, remanescem as sobras que evocam o caos da festa. A recolha do lixo foi diligente e eficaz mas há sempre uma lata, um copo de plástico ou uma flor de papel que ilude o olhar treinado dos funcionários camarários que, no final do cortejo da Queima das Fitas, procuram desembaraçar o percurso dos carros floridos de todas as reminiscências festivas (leia-se: de toda a sujidade) que se espraiam indolentemente pelo chão. Tudo como dantes. As coisas permanecem iguais mesmo quando mudam.
Na última crónica (Jornal de Notícias, 30/04/2004) aludi às modificações impostas pelo Conselho de Veteranos ao programa da Queima das Fitas. O cortejo realizou-se, pela primeira vez, ao domingo. Todavia, não fosse a caução tranquila do calendário, muitos acreditariam que a semana ia quase a meio e que aquela tarde era de terça-feira. De um ano qualquer.
A memória é fluida, uma maré de pensamentos. Por vezes, cria passados quando os deveria recriar. A verdade é que, no último domingo, durante o cortejo (dos Grelados, agora) vi-me reconduzido a todos os cortejos a que assisti no passado: os eventos mais genéricos do desfile, todas as suas minudências, revelando-se em concordância com um plano antigo, presciente e costumado.
Nos jornais, as descrições e as fotografias que se referem à última tarde de domingo remetem-nos para um paradoxo nebuloso: o cortejo mudou, o cortejo é o mesmo. As capas esvoaçantes, a desarrumação de cores e papel dos carros alegóricos, a detonação dos abraços, a contestação irónica, os bancos desdobráveis, as famílias ensoberbecidas, o meneio ébrio dos “éférreás”, as pipocas e os balões. Avatares de terno retorno (ou a inescapabilidade do cliché). Faces de um romantismo extemporâneo que sustentam o mito da Queima das Fitas.
Na realidade, alguma coisa mudou – um detalhe, apesar de tudo, relevante. As garrafas de vidro foram proibidas no cortejo. Uma cerveja enlatada, mau grado o enjoo que provoca aos adeptos da garrafa, embebeda e anima o estudante mais sequioso: isso é certo. Mas o seu recipiente não castiga e fere como os (desleais) pedaços de vidro que atapetavam as ruas em desfiles passados.
Ainda assim, dezenas de estudantes (e não só) foram assistidos pelo INEM, a maioria das quais devido a excessos de consumo de álcool. Os incidentes esporádicos de violência ou a sinistra incineração criminosa de carros alegóricos embaraçaram, também, o trajecto dos Grelados.
Contingências da festa. As fitas foram as de sempre.
(Ontem, 07/05, no Jornal de Notícias)
Nas ruas da cidade, desde os Arcos à Portagem, remanescem as sobras que evocam o caos da festa. A recolha do lixo foi diligente e eficaz mas há sempre uma lata, um copo de plástico ou uma flor de papel que ilude o olhar treinado dos funcionários camarários que, no final do cortejo da Queima das Fitas, procuram desembaraçar o percurso dos carros floridos de todas as reminiscências festivas (leia-se: de toda a sujidade) que se espraiam indolentemente pelo chão. Tudo como dantes. As coisas permanecem iguais mesmo quando mudam.
Na última crónica (Jornal de Notícias, 30/04/2004) aludi às modificações impostas pelo Conselho de Veteranos ao programa da Queima das Fitas. O cortejo realizou-se, pela primeira vez, ao domingo. Todavia, não fosse a caução tranquila do calendário, muitos acreditariam que a semana ia quase a meio e que aquela tarde era de terça-feira. De um ano qualquer.
A memória é fluida, uma maré de pensamentos. Por vezes, cria passados quando os deveria recriar. A verdade é que, no último domingo, durante o cortejo (dos Grelados, agora) vi-me reconduzido a todos os cortejos a que assisti no passado: os eventos mais genéricos do desfile, todas as suas minudências, revelando-se em concordância com um plano antigo, presciente e costumado.
Nos jornais, as descrições e as fotografias que se referem à última tarde de domingo remetem-nos para um paradoxo nebuloso: o cortejo mudou, o cortejo é o mesmo. As capas esvoaçantes, a desarrumação de cores e papel dos carros alegóricos, a detonação dos abraços, a contestação irónica, os bancos desdobráveis, as famílias ensoberbecidas, o meneio ébrio dos “éférreás”, as pipocas e os balões. Avatares de terno retorno (ou a inescapabilidade do cliché). Faces de um romantismo extemporâneo que sustentam o mito da Queima das Fitas.
Na realidade, alguma coisa mudou – um detalhe, apesar de tudo, relevante. As garrafas de vidro foram proibidas no cortejo. Uma cerveja enlatada, mau grado o enjoo que provoca aos adeptos da garrafa, embebeda e anima o estudante mais sequioso: isso é certo. Mas o seu recipiente não castiga e fere como os (desleais) pedaços de vidro que atapetavam as ruas em desfiles passados.
Ainda assim, dezenas de estudantes (e não só) foram assistidos pelo INEM, a maioria das quais devido a excessos de consumo de álcool. Os incidentes esporádicos de violência ou a sinistra incineração criminosa de carros alegóricos embaraçaram, também, o trajecto dos Grelados.
Contingências da festa. As fitas foram as de sempre.
(Ontem, 07/05, no Jornal de Notícias)
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